Apesar da insensatez e das intolerâncias...

Photo by Nathan Duck / Unsplash

Apesar da insensatez e das intolerâncias...

Mais uma vez na incoerente história humana, inocentes pagam com suas vidas pela ganância, cobiça e avareza de alguns autointitulados líderes e, até, religiosos e piedosos. Temos vivido dias em que notícias de dor, morte, destruição, intolerância e maldades nos deixam não somente perplexos, mas pessimistas, quase descrentes de que ainda podemos, como humanidade, encontrar caminhos pacíficos de convivência e respeito. Guerra e desolação em Israel e na Faixa de Gaza. Crianças, mulheres, idosos e jovens – ninguém parece conseguir escapar da sanha mortífera das bombas, das armas e da maldade. Guerra, também, na Ucrânia, no Iêmen, na Síria, em países da África e no Azerbaijão. Pura insensatez!

Esses são alguns dos conflitos sangrentos que estamos presenciando, sem falar nas mortes – muitas! – diariamente noticiadas no nosso país, movidas pelo enfrentamento de forças antagônicas que, a meu ver, já não reconhecem os limites entre o bem e o mal.

Meu coração se constrange a cada notícia dessas. Quisera eu poder fazer alguma coisa para aliviar tanta dor e sofrimento! Infelizmente, não posso... mas posso tentar colocar no “outro prato da balança”, algumas histórias de pessoas que se dedicam ano após ano, dia após dia, a serviço da VIDA.

Então, hoje quero falar do anúncio do prêmio Nobel de Medicina 2023.

As quase quatro décadas (!!) de pesquisa da bióloga bioquímica Katalin Karikó foram, finalmente, reconhecidas. Seu trabalho resiliente e paciente, sempre em busca de suas teorias acerca do RNA-mensageiro foi fundamental no desenvolvimento de vacinas contra o Sars-Cov-2, o vírus da Covid-19 que tanto nos maltratou recentemente. Juntamente com o imunologista Drew Weissman, Karikó dividirá a premiação deste ano.

Milhões de vidas salvas! Mas o caminho foi árduo. As ideias de Katalin Karikó foram sistematicamente ignoradas e até desprezadas no meio acadêmico. Foram inúmeros os pedidos de financiamento negados tanto por agências federais como por instituições privadas norte-americanas. No entanto, mesmo desacreditada por muitos colegas cientistas, essa mulher não desistiu do caminho que, acreditava, um dia a levaria a um lugar especial em que “salvar vidas” fosse uma realidade.

Em 1997, depois de 15 anos trabalhando em universidades dos Estados Unidos e ter sido diagnosticada com um câncer, encontrou-se com Weissman e sete anos depois, a dupla descobriu um método para lidar com a resposta imune do organismo, utilizando o RNA-mensageiro sintético.

Sintético?! Por que, não o “próprio”, “natural”?

Há muito se sabe que proteínas que nos são estranhas podem desencadear respostas imunes no nosso organismo. Ou seja, nosso corpo procura mecanismos de nos livrar de invasores. Com base nesse princípio, as mais diversas vacinas foram desenvolvidas ao longo dos anos, quando, para nos imunizar contra algumas doenças, recebíamos partes de um vírus ou ele próprio, inativado, obrigando nossas defesas a entrarem em ação e nos proteger. Ora, nosso DNA (o ácido desoxirribonucleico, o código genético) fica dentro do núcleo celular, e é o responsável por criptografar todas as informações sobre nossas células. Note: ele fica dentro do núcleo. É preciso, portanto, que essas mensagens sejam comunicadas, levadas de maneira efetiva e eficaz para diferentes setores celulares executarem suas tarefas. É aí que entra o RNA (ácido ribonucleico), molécula complementar ao DNA que, uma vez decodificada, resultará na produção das proteínas necessárias ao funcionamento do nosso organismo.

Contudo, o mRNA (RNA-mensageiro) é uma molécula instável e termina sendo tóxica, causando reações inflamatórias exageradas. Karikó, então, pensou que, se conseguisse entregar para as células uma molécula estável e sem esse potencial negativo, seria possível fazer com que o sistema imunológico respondesse de forma adequada, permitindo tratamentos para vários tipos de doenças. Essas ideias não foram aceitas, quiçá incentivadas. Finalmente, depois de se associar a Drew Weissman, e mais sete anos de pesquisas, a dupla conseguiu alcançar seus objetivos. Surgia o mRNA sintético.

Foi com base nessas descobertas e estudos que novas vacinas puderam ser fabricadas e, em 2021 já estavam disponíveis para que o mundo pudesse enfrentar o coronavírus-19, que tanto estrago nos causou, e que deixou sequelas que ainda estão sendo estudadas.

O trabalho de uma vida dedicada à VIDA é, enfim, reconhecido e honrado!

Finalmente, para nos aproximarmos um pouco mais dessa pessoa, transcrevo algumas de suas falas em entrevistas:

Normalmente, nesse ponto, as pessoas simplesmente dizem adeus e vão embora porque é tão horrível. Pensei em ir para outro lugar ou fazer outra coisa. Também pensei que talvez não fosse boa o suficiente, não fosse inteligente o suficiente. Tentei imaginar: tudo está aqui e só preciso fazer experimentos melhores.

Recomendou:

Se você gosta de seguir instruções, talvez o exército seja o melhor. Se você quer ser rico, não sei a resposta para isso. Mas se você quiser resolver problemas, você sabe que a ciência é para você.”

Comparando a trajetória da ciência e da pesquisa ao remo esportivo, em que os remadores não olham para onde vão, pois estão sentados de costas para a linha de chegada, a pesquisadora disse:

Eles não veem a linha de chegada, não sabem a que distância estão dela; eles meio que a sentem. Às vezes a ciência é assim.

Por fim, a cientista afirma que muitos, desconhecidos, se debruçam sobre suas pesquisas ano após ano e que ela é, apenas, uma de suas representantes.

Obrigada, Katalin Karikó, por não ter desistido!

Obrigada por nos mostrar que mesmo sem ver a linha de chegada, o que importa é remar em direção a ela! Então, não desistamos de fazer o bem!

Se quiser saber mais sobre essa história, você pode começar por aqui:

https://www.nature.com/articles/d41586-023-03046-x

https://www.nature.com/articles/d41586-021-02483-w

https://www.statnews.com/2021/07/19/katalin-kariko-messenger-rna-vaccine-pioneer/

https://www.statnews.com/status-list/2022/katalin-kariko/

https://www.blogs.unicamp.br/cienciapelosolhosdelas/

https://www.nationalgeographicbrasil.com/ciencia/2023/10/quem-e-katalin-kariko-a-historia-por-tras-da-vencedora-do-premio-nobel-de-medicina-de-2023

Iara Brasileiro

Iara Brasileiro

Professora da Universidade de Brasília. Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Laboratório de Estudos em Turismo e Sustentabilidade (LETS/UnB).
Brasília