ANNA KOMANTO' ESERU' - Festival das Panelas de Barro Macuxi da Terra Indígena Raposa Serra do Sol em Roraima

Fotógrafo: Cadu de Castro

Na cosmovisão Macuxi, Ko Ko Non, a Vovó Barro, é a terra que gera o alimento e nutre o povo. Essa nutrição, não apenas física, mas também imaterial não seria possível sem a ritualística da panela. A Panela de Barro é a materialização de um rito ancestral realizado há séculos por mulheres Macuxi. O barro é coletado em um local considerado sagrado nas serras que estão nos arredores da comunidade, onde as mulheres, indispensavelmente, pedem permissão à Vovó Barro e sob sua proteção, retornam à comunidade a fim de ritualizarem o saber-fazer ancestral.

O processo artesanal de confecção, desde a coleta do barro sagrado até a finalização da peça, compreende o universo do conhecimento ancestral feminino. Envolve, além das técnicas, a estreita relação das mulheres Macuxi com Ko Ko Non. Há uma consideração sobremaneira respeitosa, para não a deixar “zangada”. As mulheres não manuseiam a argila se estiverem em período menstrual ou em vivência de luto. Isso para que a Vovó Barro não sinta a tristeza e a peça não tenha rachaduras.

Em entrevista ao G1 Roraima, a ceramista Macuxi E. Raposo relata: “o barro sente e a nossa tristeza vai toda para ela, para a Vovó Barro. As peças nunca dão certo, às vezes elas vão perfeitinhas no fogo, mas lá elas explodem”. A alegria é uma recomendação da Vovó para estar na roda de produção da panela. Outra ceramista C. Raposo, diz: “Essa é a nossa cultura. A gente precisa movimentar para não esquecer. Para lembrar todos os antepassados que faziam [...]. É uma herança cultural”

O Festival das Panelas de Barro – Anna Komanto’ Eseru, é a culminância desse saber-fazer tradicional, em que as panelas são festejadas. Tanto as pessoas da comunidade quanto os visitantes, que chegam a convite da própria comunidade, celebram o festival com danças (paxirara, areruya), pinturas corporais (grafismos), apresentação de rituais (defumações e curas), brincadeiras tradicionais (arco e flecha, ralação de mandioca etc.) e consumo da culinária tradicional (caxiri, damurida). O Festival vem acontecendo desde 2012.

A comunidade Raposa I - Maikan Pisi Pata’ está situada no município de Normandia, estado de Roraima, na etnoregião da Raposa, uma das quatro que compõem a Terra Indígena Raposa Serra do Sol no extremo norte do Brasil. O acesso à comunidade, desde a capital Boa Vista, se dá pela BR-401 estrada asfaltada que liga o Brasil à Guiana até a altura do km 100, sendo necessária conversão para a BR-433 até a comunidade totalizando aproximadamente 240 km.

A Raposa I recebe visitantes numa proposta de etnoturismo, não somente na ocasião do Festival como também em outros períodos, desde que recebeu a anuência da Fundação Nacional dos Povos Originários/FUNAI para executar o Plano de Visitação Turística. O Plano foi submetido ao órgão no ano de 2018 em observância a IN Nº 03/2015-FUNAI, ocasião em que a comunidade firmou parcerias com as instituições – Universidade Federal de Roraima, Universidade Estadual de Roraima, Instituto Federal de Roraima, Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, Cactos da Amazônia Consultoria, Universidade Estadual do Amazonas, Ministério Público Federal de Roraima, e Fundação Nacional dos Povos Indígenas – para a sua elaboração.

A submissão do Plano tramitou e foi avaliada obtendo a autorização no ano de 2020. Entretanto a Carta de Anuência do Plano de Visitação Turística somente foi assinada pela FUNAI Nacional no início do ano corrente. Para a comunidade Raposa I foi uma longa espera, pois houve um grande esforço comunitário para adequação do Plano às normas e diretrizes obrigatórias para a visitação com fins turísticos em terras indígenas.

Neste ano, o Festival das Panelas de Barro está na sua nona edição e a comunidade da Raposa I convida o público em geral para conhecê-la e mergulhar na lagoa da imersão cultural Macuxi. Nas palavras de E. Raposo, Coordenador Executivo do Festival, o etnoturismo acontece “[...] quando o visitante faz uma imersão na cultura ancestral”, provando da comida e bebida milenar e quando “toca no barro sagrado para fazer uma panela de barro”. Nessa imersão o visitante tem oportunidade de ouvir histórias do milenar modo de viver dos Macuxi. Raposo (2023), destaca que o etnoturismo, na visão da comunidade, é uma prática aliada ao conhecimento tradicional indígena de modo a contribuir para a gestão do território comunitário ancestral; enfatiza que não o enxergam somente como uma alternativa econômica para a comunidade.

Pelo contrário, para a comunidade, o etnoturismo é necessário e está se estabelecendo como um dispositivo para manutenção das suas tradições envolvendo a essência cultural do povo Macuxi. Ao mesmo tempo em que dialoga com o debate contemporâneo em relação ao uso de novas tecnologias, novos arranjos produtivos e principalmente na possibilidade de alcance do real protagonismo indígena (RAPOSO, 2023). Nessa direção, a comunidade Raposa I se mostra resiliente ao deparar com os efeitos das crises globais em seu território.

No caso das ceramistas indígenas, há uma preocupação em relação à principal matéria-prima, a argila. Conforme entrevista da gestora ambiental do Conselho Indígena de Roraima, S. do Vale (liderança indígena Wapichana), as mudanças climáticas ameaçam a consecução da tradição indígena Macuxi. A gestora relata que as ceramistas observaram, no ambiente onde o barro é coletado, que devido as secas que afetam a região, o material está ficando muito desidratado perdendo as características de argila, o que tem dificultado o processo de coleta.

Outra questão diz respeito aos efeitos do garimpo ilegal. A ceramista C. Raposo, aponta que o garimpo também trouxe prejuízos para a produção das panelas. Ela relata que, devido à atividade dos garimpeiros, não é mais possível coletar barro em determinados pontos onde eram realizadas coletas. Assim, o território ancestral Macuxi se vê ameaçado pelas incertezas advindas das ações, predominantemente hegemônicas, de grupos políticos contrários ao direito efetivo dos povos originários sobre suas terras, contudo, se mostra pujante na resistência do seu povo.

Desse modo, há de se manter resiliente diante do cenário em que o Projeto de Lei nº 2.903/2023 (Marco Temporal - que regulamenta arbitrariamente os direitos indígenas sobre seus territórios), foi aprovado pelo Congresso Nacional, vetado “parcialmente” pelo Presidente da República, no entanto com a possibilidade de rejeição dos vetos pelo legislativo. A despeito de todas as outras formas de violência, já denunciadas pelas vozes originárias, o Festival das Panelas de Barro Macuxi se mantém fecundo de todo conhecimento ancestral que nutre o movimento de resistência indígena. Vida Longa ao Anna Komanto’ Eseru!

Referências

Ramalho, Y. G1 RR, Boa Vista, 08 nov 2022. <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2022/11/08/panelas-de-barro-produzidas-ha-seculos-por-mulheres-macuxi-devem-ganhar-selo-de-referencia-a-terra-indigena-raposa-serra-do-sol.ghtml>

Raposo, C. A. Cruz, M. O. S. Dicionário da Língua Makuxi. 2. Ed. Boa Vista: Editora da UFRR, 2016.

Raposo, E. Divulgação do IX Festival das Panelas de Barro - Anna Komanto’ Eseru, 2023.

Santos, E. R. Etnogeografia Macuxi: o lugar na memória da Comunidade Indígena Raposa I, Estado de Roraima. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Geografia. UFRR, Boa Vista, 2020.

Vitório, L.S. Relatórios de Visita Técnica à Comunidade Raposa I, Instituto Federal de Roraima - realizadas em 2017, 2018, 2019.

Luciana Vitório

Luciana Vitório

Mãe, Comunitária. Professora do Instituto Federal de Roraima. Mestre em Turismo e Hospitalidade pela UCS/RS. Doutoranda em Turismo PPGTUR/UFRN. Pesquisadora Associada GEPPOT/UFRN e LETS/UNB.
Natal/RN