Um memorial para Niéde Guidon

Imagem: MIS/SP

Helena Costa

Niéde há muito é conhecida e admirada por aqueles que trabalham por um turismo mais inclusivo. Na Serra da Capivara, essa corajosa cientista liderou movimentos que olhavam não apenas para os antepassados e tudo que a Arqueologia poderia revelar. Como se isso fosse insuficiente, ela olhava para aquelas comunidades que ali residiam, em grande penúria, e buscava formas de que pudessem viver a grandeza do que os nossos ancestrais ali deixaram.

Toda a admiração e agradecimento do LETS à Niéde Guidon, que fez muito pelo patrimônio arqueológico do Brasil e do mundo. Que deixou um legado de determinação, apesar das incontáveis dificuldades. Que deixou um Parque Nacional digno de ser motivo de orgulho para os brasileiros (ainda que pouco conhecido por tantos de nós).

Em março deste ano, o Museu da Imagem e do Som de São Paulo já havia organizado uma exposição em comemoração aos 90 anos de Niéde. Celebrada e reconhecida em vida (felizmente!) por suas gigantes contribuições como mostrado aqui.

Pensamos em formas de registrar essa homenagem. Um memorial mais institucional, mais pessoal, mais acadêmico? E chegamos aqui: ao belíssimo texto da nossa pesquisadora Prof. Dra. Iara Brasileiro - com quem eu aprendi tanto sobre Niéde e passei a ter um carinho imenso por essa mulher que nunca cheguei a ver pessoalmente.

Fiquemos com o texto da Prof Iara, que nos emociona a cada palavra.

Niéde Guidon. Fonte: Revista Época, 2017

À incansável, corajosa e determinada mulher, Niède Guidon

Iara Brasileiro

Niède Guidon encerrou sua vida entre nós no último dia 4 de junho. De acordo com pessoas próximas a ela, “sentiu um mal-estar, tomou alguma coisa para aliviá-lo e foi dormir”. Na madrugada, seu coração parou. Simples assim. 

O que dizer dessa pesquisadora e cientista? O que dizer dessa mulher?

Impossível não ser impactada por sua presença discreta, mas impressionantemente forte e marcante. Tive o privilégio de conhecê-la, de ser recebida em sua casa e, até, de discutir com ela a possibilidade de desenvolvermos um projeto juntas. Escrevi a proposta que ela assinou sem objeções e encaminhamos à instituição que, pensávamos, teria todo interesse em apoiá-lo. Infelizmente, nunca recebemos resposta, mesmo sabendo que todos os que leram o projeto o julgassem inovador e importante. Uma lástima, mas esse seria tão somente mais um “não” que recebemos quando buscamos recursos para pesquisas que, por mais importantes que sejam, não sensibilizam as arcas dos financiadores. Certamente Niède esbarrou em muitas portas. Aquela foi só mais uma.

O projeto não vingou, mas a lembrança de Niède permanece em meu coração. Desconheço as razões que ela teve para determinar que o Museu fosse aberto para mim; que eu fosse acompanhada por pesquisadora e docente na visita aos laboratórios; que o chefe do Parque me mostrasse trilhas ainda não abertas aos visitantes; que conversasse comigo por horas. 

Como esquecer tamanha hospitalidade, se todas as “soleiras” foram transpostas para sempre? 

Nos dias em que estive visitando a cidade de São Raimundo Nonato (PI), o Museu do Homem Americano e o Parque da Serra da Capivara, pude conversar com mulheres e homens que trabalhavam direta ou indiretamente para a Fundação. Ali aprendi, de perto, o que é conhecer e cuidar do passado, valorizar o presente para assegurar o futuro.

Ao perceber que muitas mulheres eram maltratadas e desvalorizadas, Niède passou a contratá-las, garantindo-lhes emprego, poder e, consequentemente, liberdade. Não descuidou dos homens, dedicando-se a ensinar-lhes valores de cuidados consigo, com os outros e com a natureza. Empregou os caçadores como vigilantes, dando-lhes outra perspectiva para seu olhar sempre atento, conhecedor dos rastros, cheiros e presenças. Fez questão que as crianças frequentassem a escola. Promoveu a formação musical e incentivou os trabalhos em cerâmica. Resgatou a grandeza da vida milenar. 

Quanto à ciência, confrontou as teorias estabelecidas e, corajosamente, defendeu outras ideias. Por décadas enfrentou críticas à sua atuação e explicação sobre seus achados arqueológicos. Identificou mais de 800 sítios arqueológicos, criou a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM) e o Parque Nacional da Serra da Capivara, Patrimônio Mundial pela UNESCO. Marcou a ciência.

O que a fez tão presente? Talvez, a força misteriosa do passado longínquo, mas tão vivo, a acompanhasse em sua caminhada. Ou, talvez, quem sabe, ela tenha aprendido com a vegetação da Caatinga , com as onças e os pássaros, e com os pequenos mocós, a simplesmente, resistir e manter a alma livre, valente, firme e perseverante. 

Niède Guidon deixou suas “marcas na pedra”.

Seu enterramento está no quintal da casa em que vivia, junto ao Museu do Homem Americano.

Helena Costa

Helena Costa

Cofundadora e pesquisadora do LETS/UnB. Professora Associada VI - Departamento de Administração da Universidade de Brasília. Doutora em Desenvolvimento Sustentável. Mestre em Turismo. Administradora.
Brasilia, Brasil
Iara Brasileiro

Iara Brasileiro

Professora da Universidade de Brasília. Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Laboratório de Estudos em Turismo e Sustentabilidade (LETS/UnB).
Brasília