Qualquer semelhança não será coincidência

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Desde o final do mês de fevereiro vimos sendo informados sobre o resgate de trabalhadores em situação análoga à escravidão, particularmente no estado do Rio Grande do Sul. Que fique claro, no entanto, que não é somente nesse estado que essa prática intolerável e inaceitável ocorre. Contudo, desta vez, fomos surpreendidos pela fala audaciosa e abominável de um vereador da cidade onde os últimos fatos ocorreram – seu discurso racista, preconceituoso e execrável foram uma espécie de segundo golpe em nossos ouvidos, cérebros, mentes, por que, não? nos nossos corações e sentimentos.

A prática desprezível da privação da liberdade de um ser vivo, mais ainda, de um ser humano, com base nos ganhos econômicos que o trabalho dessa pessoa possa trazer para seu pretenso e autoproclamado “dono”, é intolerável. Desde a Antiguidade, entre os povos mesopotâmios, gregos e romanos – para citar apenas alguns – a ideia de se manter pessoas cativas, privadas de sua liberdade, tem prosperado em algumas mentes e culturas, variando conforme as diferentes épocas e contextos, mas, mantendo-se sempre, ignominiosa. Se ao lermos a História antiga ficamos chocados com o pensamento de que seres humanos pudessem ser considerados inferiores aos outros, simplesmente porque suas tribos ou nações haviam sido vencidas em uma ou muitas batalhas – forjadas na sua quase totalidade, por seus gananciosos governantes e não pelos habitantes do lugar, por que não nos assombramos nos dias atuais, quando lemos ou ouvimos que pessoas continuam a ser escravizadas? Definitivamente, a escravidão não é coisa do passado!

É fato que a escravidão existe “desde que o mundo é mundo”, mas esse horror se fez mais presente e mais evidente, em escala industrial, como disse Laurentino Gomes em seu livro Escravidão, quando os colonos europeus trouxeram, à força, 12,5 milhões de africanos para a América, em 35 mil viagens (!). Para o Brasil, foram trazidas cerca de 5 milhões de pessoas de pele de cor preta.

A privação da liberdade (unfreedom) pode ser notada em pelo menos três modos: escravidão, exploração e opressão. O tráfico de seres humanos, a servidão por dívida e trabalho doméstico forçado são apenas alguns exemplos.

A escravidão moderna, quase sempre não percebida por nós, atinge quase 50 milhões de pessoas no mundo. E, pasme-se,  25% delas são crianças! Como os tempos são outros, a escravidão também se mostra com outras fisionomias, nem sempre tão claras e facilmente reconhecíveis. Se antigamente, as pessoas eram vendidas, compradas ou raptadas, repartidas como butim de guerras, hoje elas são aliciadas, no mundo todo, com promessas de uma vida melhor, de ganhos para alimentar e cuidar de si e da família. Hoje, na maior parte das vezes, o “senhor” gasta apenas com o transporte do trabalhador até o local do trabalho.

Engana-se, ainda, quem pensa que essa prática esteja presente apenas em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Ela está no mundo todo. Estudos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam que há mais de 1,5 milhão de pessoas em condições de trabalho análogo à escravidão na Europa, Japão, Austrália e América do Norte. De acordo com a mesma instituição, uma em cada cinco pessoas é vítima de exploração sexual e a maior parte trabalha na agricultura, pesca, construção, confecção têxtil e trabalho doméstico. A mesma OIT estima que a “escravidão moderna gera mais de 150 bilhões [de dólares] de lucro todos os anos”, o que equivale à “soma das quatro empresas mais rentáveis do mundo”.

Não pensemos que não sejamos afetados por essa prática. Essa concorrência desleal termina resultando em menores salários ou no corte de benefícios, além de os governos terem que arcar com despesas legais que poderiam ser recursos investidos na melhoria de vida da população.

A história do Brasil nos conta de povos africanos (de diversas nações) escravizados e embarcados em navios de maneira desumana e cruel. Alguns historiadores antigos e de hoje, viajantes estrangeiros que visitaram o nosso país sob as mais diferentes motivações, relataram  os costumes do país a partir da chegada do rei Dom João VI a nossas terras. Estávamos em 1808. Muitos foram e são os que antes e hoje registraram suas impressões de que aqui, a escravidão foi “suave”. Sim! Comparavam a posse de alguém no Brasil com outras formas de domínio em outros tempos e lugares.

Ouso discordar desses pensadores, intelectuais, antropólogos, sociólogos, economistas e políticos (para citar apenas alguns)! Os estudos sobre a prática da escravidão no nosso país foram e são realizados sobre registros feitos pelos “donos” das pessoas. Muito raramente se encontrou alguma anotação feita a partir da experiência do escravizado. É, portanto, história contada por um lado só.

Em 1888, finalmente, a princesa Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga decretou a abolição da escravatura no Brasil. O país, agora, e por fim, entrava na lista dos que afirmavam não aceitar que a liberdade de alguém pudesse ser definida por outrem. Contudo, os livros também nos dão conta de que não houve um plano ou projeto de inclusão daquela mão de obra, antes escrava, na vida “liberta”.

O tempo passou – lá se vão 135 anos – e o que temos hoje? Pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão, principalmente, de acordo com os dados oficiais, nas áreas rurais, em plantações de cana-de-açúcar, fumo e café, entre outras; na construção civil; em empresas de refrigerantes; de produção de papel; nas casas, como trabalhadoras domésticas, ou, ainda, como escravas sexuais.

Quando autuados, os responsáveis pelas empresas afirmam “desconhecer” o que se passava com seus contratados, que, por sinal, o eram por empresas terceirizadas. Outros afirmam que o “assistencialismo é o culpado pela falta de mão de obra”. Os mais ousados, das tribunas das câmaras de vereadores ou afins, afirmam despudoradamente, que não se deve “contratar essa gente suja e ingrata”.

Como se viu antes, a abolição aconteceu, mas não foi acompanhada de ações efetivas que a enfrentassem e combatessem. Muitos no nosso Brasil ainda acreditam que podem – e, talvez, até, devem – contratar trabalhadores sem que lhes sejam garantidos não somente os direitos trabalhistas, mandados pelas leis, mas que lhes sejam asseguradas condições dignas de vida, aquelas de direito de todos os viventes. Muitos – demais! – continuam sem acesso à educação, à saúde e a empregos decentes. Por isso, qualquer semelhança não será coincidência.

Todas essas histórias de sofrimento me fizeram lembrar, esses dias, de algumas peças literárias, entre elas, As vinhas da ira, do laureado escritor americano John Steinbeck. A obra se tornou um clássico da literatura mundial e foi transformada em filme (1940) indicado a cinco prêmios Oscar, tendo ganho dois (melhor atriz coadjuvante e melhor diretor). A história insólita e de uma realidade dura, traz muito da humanidade que é preciso resgatar. Vale conferir!

Iara Brasileiro

Iara Brasileiro

Professora da Universidade de Brasília. Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Laboratório de Estudos em Turismo e Sustentabilidade (LETS/UnB).
Brasília