Helena Costa
Mariana Oliveira
Thiago Allis
A Ilha do Ferro é um encanto. Um povoado pequeno, em Alagoas, que nem se encolhe nem se estica entre o sertão e o Velho Chico. De um lado, terras alagoanas. Do outro, Sergipe. Sua população de cerca de 500 pessoas tem água, arte onipresente e comida gostosa. Sua gente é simpática e emanam alguma magia no modo como o tempo passa. Lá parece que ficamos, nós mesmos, mais aterrados e, ao mesmo tempo, conectados com algo que transcende.
O Rio São Francisco é uma entidade que corta o âmago brasileiro nas suas porções mais áridas. Por isso tão reverenciado nos afetos, no comércio, na estruturação da vida. Um rio teimoso, que nasce no maciço central do país, e resolve correr para o norte, escoando-se entre baixadas e paredões, até chegar nas areias singelas da costa atlântica. Cada trecho dialoga e produz cultura diversa, marcada pela relação com as águas e os fluxos que elas permitem há milênios.
Uma visita à Ilha do Ferro - que, tecnicamente não é uma ilha, mas um remanso no terço final do Rio São Francisco - transforma. Transforma como quase todas as boas viagens que caminhantes atentos e curiosos fazem. Mas também preocupa: que papel e que desdobramentos o turismo terá no futuro próximo deste lugar tão especial?
Neste texto, reunimos três profissionais de Turismo com olhares, experiências e atuações diversas, apaixonados por arte popular e por tudo de bonito que o Brasil oferece. E sabemos que não é pouco - mas nem sempre disponível logística, simbólica e mesmo financeiramente.. Em comum, dividimos o impacto e as reflexões que uma ida à Ilha do Ferro causou sobre nós. Quisemos partilhar essas impressões assumindo o risco de desviar das superficialidades de uma visita rápida. Mas achamos que vale a pena: o relato pode ser alimento à reflexão para quem - como nós - reverencia um Brasil que merece ser vivido sob preceitos de turismo responsável.
Modestamente, queremos organizar alguns pensamentos de quem achou este lugar tão único, autêntico e capaz de levantar questões para quem atua em desenvolvimento turístico, economia criativa, mobilidades de gentes, coisas e ideias, sustentabilidade e experiências de toda ordem.
Mariana:
Chegar à Ilha do Ferro é atravessar um limiar onde o tempo borda os laços com linha de presença e convivência. As pessoas nos chamam pelo nome, apresentam famílias, partilham histórias como quem passa o café coado da tarde. Até os cães das ruas têm nome — e pertencem a todos. A vida aqui pulsa no compasso do rio e das mãos que, esculpindo madeira, transformam o que a terra dá em arte viva.
No cotidiano, sorrisos largos; no ofício, orgulho e calma. É nesse cenário que o turismo na Ilha do Ferro encontra sentido: quem chega vem para aprender, conhecer e sentir, não para moldar. O valor maior é ser o que se é, sem trocar por uma ideia de "melhor" que vem de fora.
A Ilha do Ferro nos ensina que hospitalidade não cabe em manuais, nem pertencimento se ergue com receitas. É preciso escutar antes de ensinar, caminhar antes de guiar, sentir antes de transformar.
E, aos poucos, se percebe: o verdadeiro luxo não é prato com nome em francês, mas o cheiro do feijão da Bruna ou da Bia, a leveza da dona Irene, o sabor da pizza do Pedro, o riso das crianças jogando bola à beira-rio. Nesse contraste, se abre o convite: repensar a forma como tocamos os lugares — e as vidas — por onde passamos.

Helena:
Parece que voltamos da Ilha do Ferro mais conectados para sermos mais artísticos, para trazermos coisas bonitas e únicas ao mundo. Senti lá uma quietude profunda, misturada com uma inquietude criativa. Um lugar especial, sem dúvida. Nem por isso quero te convencer a ir lá. Tem vários materiais já disponíveis que farão isso com você sem muito esforço.
Por trabalhar com turismo - ter visto muita coisa nos últimos 20 anos - além de ter formação, pesquisar o assunto, atuar na área e ter consciência sobre seus ônus e bônus, prefiro mesmo que não vire um hit. Já vivemos o bastante para ver Jericoacoara, Pirenópolis, Pipa e não queremos cometer os mesmos erros. Quero apenas que não se perca seu valor criativo e comunitário. É necessária uma grande delicadeza ao pisar naquela terra.
O povoado parece longe, parece inalcançável. Mas não é. Parece que se manteve com poucas mudanças no modo de vida nos últimos 100 anos, mas estou certa de que aqueles que conheceram há 10 anos, já notariam muitas diferenças. Ouvi histórias de como era - e de como deveria continuar sendo.
Minhas maiores inquietações ao sair de lá foram como este povoado irá preservar, nas próximas décadas, suas características que o fizeram tão único, e ainda assim acompanhar a dinâmica do sucesso de suas peças e seus mestres? Como seguirão extraindo a madeira de forma a sustentar os ofícios que criaram, sobretudo, a partir dela?
A resposta para isso está na mudança de uma prática centenária de ser coletor de madeira - agora é tempo de iniciar outra conduta, de replantar, de regenerar - como sugeriu o Yang, brilhante jovem líder da associação de artesãos. Este é o legado que ele gostaria de deixar.
Como manter entregas volumosas para os grandes centros - eu mesma presenciei encomendas de 150 peças de um único modelo em um pedido para São Paulo - e manter uma vida calma ali naquele lugar do mundo? Como seria possível ampliar os ganhos - em múltiplas dimensões - para os artistas e suas famílias, ao mesmo tempo valorizar o seu saber fazer, assim como a convivência genuína com quem decide visitar a Ilha? Como evitar que outros atravessadores venham comercializar uma rica experiência turística que está ali nos ateliês, apenas aguardando um desenho e uma percepção do valor intrínseco a ela?
Algo que me incomoda e atiça a minha curiosidade é a relação comercial com os distribuidores. Em buscas online, constatei peças vendidas em lojas especializadas por valores de 200 a 330 reais. Essa mesma peça custa 50 reais se comprada diretamente na mão do artista. Isso me gera um mal-estar que não pareceu acometer nenhum dos artistas para quem perguntei sobre a relação. Essa questão me move para maiores investigações futuras, mas parece mais minha do que deles...
De toda maneira, saio provocada em um sonho: de viver mais tempo ali, e trabalhar ao lado deles para co-criar experiências nos ateliês, respeitando o tempo e a lógica de cada artista, que poderia passar a vender mais do que um objeto de arte, mas sim uma experiência artística e formativa de grande valor para os visitantes - em uma escala que respeite a vida que se vive ali.

Thiago:
A Ilha do Ferro, parte do município de Pão de Açúcar, na beirada alagoana, vem ganhando visibilidade, principalmente pela circulação da arte que viaja pelas redes sociais, malas e sacolas de viajantes, fretes de lojas, bem como por quem vem atrás de vivenciar, ver, sentir a essência deste ambiente criativo.
Uma das reflexões que fiz sobre esse lugar e o que aí se produz diz respeito sobre os muitos circuitos que peças de arte popular desenham mundo afora - desde a concepção estética quase ancestral até a venda e o pouso em lares distantes.
Claro que esse assunto não é novo quando se discute comércio de arte, a dita popular. Aqui objetos de madeira policromada se revestem de uma ambivalência: de um lado, a oportunidade de vivenciar a cultura in loco, em visita a um povoado que pouco a pouco entra no mapa de possibilidades de turismo fora do convencional; e claro, isso inclui consumir simbólica e economicamente a criação artística das entranhas do Brasil; de outro, uma crescente drenagem de peças, que, por entrarem no repertório de gosto (ou moda) de classes médias urbanas e distantes, alimentam os portifolios de intermediários comerciais, para encomendá-las, adquiri-las, transportá-las e comercializá-las amplamente (especialmente on-line)
Em qualquer caso, a Ilha do Ferro é posta em movimento ela mesma, alarga suas fronteiras para além do Velho Chico. Em grande medida, os curiosos que chegam - como nós! - são agentes ativos dessa mobilização de um lugar que, até não muito tempo atrás, pouca gente seria capaz de localizar num mapa. Isso tudo aguça o paladar de um pesquisador de mobilidades. A compra in loco dialoga muito com essa visão das mobilidades que eu tenho trabalhado.
Parto do pressuposto teórico-metodológico: seguir as coisas, em sua materialidade e relacionamentos, nos ajudam a entender fenômenos contemporâneos- incluindo o turismo.
Ao esquadrinharmos o caminho das coisas, temos a chance de entender a dinâmica dos fatos em todas as suas dimensões, a partir de outras miradas e conexões: dos indivíduos a elas vinculados, dos processos territoriais, das dinâmicas econômicas, das dimensões simbólicas, em função daquele mover-se, do mover-se das coisas.
Isso não se resume à perspectiva de um estudo econômico, como é que essa cadeia produtiva se constrói, como é que se agrega valor entre a origem da matéria-prima até seu consumo na outra ponta. Isso interessa e elucida certas nuances, mas, na forma como o estudo das mobilidades sugere, trata-se sobretudo de identificar os pontos dessas cadeias em que experiências turísticas são produzidas.
Mas voltemos à Ilha do Ferro. Essas peças são produzidas ali, vão gradativamente agora movendo-se em novos circuitos de valorização nacional e, possivelmente, até internacional. Essa nova trama de relacionamentos se estrutura a partir de vários caminhos: projeção midiática, circulação nas redes, promoção dos estados, pessoas que visitam e contam, influenciadores, matéria na revista da Gol, etc.
Essa projeção Ilha do Ferro alimenta a construção de um imaginário, preponderantemente associado à estética e à materialidade das peças de madeira coloridas. Com isso, esses produtos circulam simbolicamente - aí as pessoas ou querem comprar na lojinha online, na galeria, ou querem ir lá comprar pessoalmente. Criam-se desejos nas brechas e elos dessa circulação simbólica e mas também material. Em alguns casos, isso gera uma demanda para os intermediários disponibilizarem as peças em lojas físicas ou virtuais, e cada vez mais pessoas consomem Ilha do Ferro através da compra daquela arte, mas não necessariamente estão interessadas ou dispostas a uma vivência local. Em outros casos, essas circulações produzem um curiosidade de outros grupos de pessoas para irem até lá porque têm uma sensibilidade e outros estímulos de conhecer o contexto da produção, viver o lugar, conhecer o artesão, ter vivência do São Francisco, e, enfim, comprar in loco. Ou seja, é o turismo associado a uma produção cultural materializada e territorializada, enraizada nas beiras do rio-vida.
Aqui temos uma encruzilhada desafiadora: se, por um lado, abastecer mercados distantes e volumosos (em vendas on-line ou por atravessadores) garante receita regular e possivelmente maior, por outro, isso pode gerar uma pressão de produção quantitativa e, quanto mais gente se dispõe a conhecer o povoado, gerar frustração no caso de desabastecimento (agora direcionado para entregas comerciais em escala - para consumidores que tenham sensibilidade para saber, vagamente, não mais que o nome do lugar). Em certo sentido, a fama - e até o reconhecimento - podem resultar numa autofagia das vantagens intrínsecas deste lugar inspirado e inspirador, minando potencialidades únicas. Quem e como irá equilibrar essa régua é uma questão que cabe, primordialmente, a essa mesma comunidade.
Mais do que tergiversações teóricas, essas dimensões menos óbvias das mobilidades podem servir de guia para leituras de práticas turísticas ligadas a uma produção cultural num território determinado e, a partir disso, estruturar plataformas de ação para o desenvolvimento local.





Imagens da Ilha do Ferro. Linha superior: Thiago Allis. Linha inferior: Helena Costa
Quem Somos
Helena Costa é de Brasília, onde é professora de Turismo e Administração na Universidade de Brasília, com atuação em pesquisa no LETS, projetos e políticas públicas em turismo e sustentabilidade.
Mariana Oliveira é arquiteta e bacharel em Turismo, vive em Recife e tem vivência em desenhar roteiros e experiências extremamente peculiares pelo Brasil.
Thiago Allis é professor e pesquisador em Turismo da EACH USP, e se dedica, junto de muitas outras pessoas engajadas, ao estudo das mobilidades e turismo no Mobtur.
Links MobTur
Para saber mais:
Histórias de Casa Ilha do Ferro
MiniGuia Ilha do Ferro The Summer Hunter