Homo neanderthalensis e Homo sapiens

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Em 1856, quando trabalhavam no Vale de Neander (Alemanha), alguns operários encontraram o que julgaram ser restos de um urso. Tempos depois, paleontólogos afirmaram que aquelas eram evidências de uma espécie humana predecessora à nossa que teria existido entre 400 mil e 40 mil anos atrás.

Extinto há 40 mil anos, esse neandertal (Homo neanderthalensis) era tido como um ser brutal, tosco, literalmente “primitivo”. Descobertas recentes, no entanto, indicam que era mais parecido conosco (Homo sapiens) do que pensávamos – ou gostaríamos...

Hoje já sabemos que os neandertais conheciam e utilizavam ferramentas, tanto de uso doméstico como para a caça; cortavam e descascavam pedaços de pau para fazer lanças e outras armas. Tudo indica que eram adaptados ao clima frio da região que habitavam e que é provável que necessitassem consumir 4480 calorias por dia. Acredita-se que confeccionavam roupas e calçavam os pés. Há indícios de que enterravam seus mortos e que se enfeitavam. Em 2018, pesquisadores encontraram evidências de pinturas rupestres de natureza abstrata, indicando que, talvez, esses grupos fossem capazes de pensar de forma simbólica.

No entanto, os neandertais desapareceram. Esse fato alimenta a dedicação incansável de pesquisadores e, claro, não só o meu interesse e a minha curiosidade – mas, com certeza, de milhares de pessoas mais.

Já se sabe que os neandertais coexistiram – e acasalaram – com o Homo sapiens, originado no continente africano há 300 mil anos. A “genética sapiens” venceu e o neandertal desapareceu.

Por quê?

São várias as hipóteses: alguns consideram que a evolução genética tenha selecionado características mais viáveis; outros supõem que a competição por comida e abrigo tenha sido a razão da extinção de uma espécie em função da outra. Para outros mais, talvez o fato de os neandertais viverem em pequenos grupos e serem em número reduzido tenha sido a causa da sua extinção. Talvez, ainda,  a mudança climática tenha sido a causa do desaparecimento dos neandertais: há registros de um período de mil anos de frio na Europa Central, coincidente com essa época. Por outro lado, é possível que o frio tenha sido menos intenso nas regiões habitadas pelo Homo sapiens, o que lhe teria garantido a sobrevivência. Contudo, há outra teoria – as armas dos humanos sapiens teriam sido melhores que as dos neandertais!

Os sapiens– os sábios – suplantamos os “brutos”. Aqueles que tinham rituais, que enterravam seus mortos (há indícios de um enterramento com flores junto ao corpo); que fabricavam ferramentas diversas; que se protegiam com vestimentas e calçados; que caçavam grandes animais e que pintavam paredes de suas cavernas; que mascavam casca de álamo (fonte de ácido salicílico, o analgésico da aspirina) para tratar abcessos dentários, foram suplantados pelos “sábios”.

A história dos neandertais nos conta sobre um mundo diferente do nosso, em que os humanos coexistiam como quatro espécies confirmadas por estudos genéticos: Homo sapiens, H. neanderthalensis, H. floresiensis e H. erectus. A literatura e o cinema nos mostram obras como A guerra do fogo de J.H. Rosny, por exemplo e entre outras, em que os neandertais, sempre são retratados como menos inteligentes, menos capazes.

A arqueologia, no entanto, desmontou essa teoria.

Nas palavras do biólogo Lluís Quintana-Murci, diretor da unidade de Genética Evolutiva Humana do Instituto Pasteur, “os neandertais nos fascinam porque nos lembram demais de nós mesmos. É uma mescla de medo e curiosidade, de amor e ódio, porque somos nós mesmos, mas ao mesmo tempo, não.” Já para o paleoantropólogo Jean-Jacques Hublin, diretor do Departamento de Evolução Humana do Instituto Max Planck, “eles nos apaixonam porque na árvore filogenética humana é [sic] a criatura mais próxima dos homens e, ao mesmo tempo, é diferente. É outra humanidade [...]”. Pode-se, ainda,  citar o arqueólogo Francisco Giles Guzmán, integrante da equipe do Museu de Gibraltar, que ao comentar sobre os diversos conhecimentos dos neandertais, acrescenta: “[...] Os neandertais caçavam com lanças de contato, escondendo-se. Não tinham inventado o arco ou as lanças atiradas de certa distância. Tinham pensamento simbólico e enfeitavam o corpo, mas não produziram a arte figurativa característica dos sapiens. Como nós, dominavam o fogo, processavam os alimentos e, sobretudo, sobreviveram em um ambiente inimaginavelmente hostil. [...] A nossa tecnologia é superior ou apenas diferente? A chegada dos humanos modernos à Austrália e América coincidiu com extinções em massa de megafauna, o que prova que nossos intentos ensejam enormes problemas, como fica claro com o que está acontecendo no planeta desde a revolução industrial”.

Então, o que levou os neandertais à extinção?

De acordo com Antonio Rosas, diretor do Grupo de Paleoantropologia do Museu Nacional de Ciências Naturais (Madri), “Na extinção das espécies, nunca há uma única causa, embora haja quase sempre uma acima: a degradação do meio ambiente. No caso dos neandertais, trata-se de um fenômeno multifatorial. [...] Além disso, novas populações chegaram, com uma tecnologia diferente e um sistema cultural muito poderoso. Aquelas populações somos nós, os sapiens”.

Rosas continua: “O que é uma espécie humana? Acreditamos durante muito tempo que nós, os sapiens, somos superiores. Durante grande parte da história, o conceito de humanidade não incluía outras populações, basta ver o que se dizia e escrevia na época do colonialismo. Eles tinham desenvolvido todos os atributos que consideramos humanos e, no entanto, não são iguais a nós. É uma humanidade diferente, certamente com uma psicologia distinta. A inteligência é uma potencialidade, uma capacidade para aprender, que se manifesta de diferentes maneiras.”

Por fim, Clive Finlayson, zoólogo e paleoantropólogo afirma: “As diferenças em relação a nós são culturais e a cultura material não é um indicador de inteligência. Eram menos inteligentes que nós no Renascimento porque não tinham internet? Eram menos inteligentes meus avós porque não tinham aviões?”

Não há dúvida de que a habilidade técnica dos neandertais, sua capacidade de adaptação a diferentes ambientes e sua longa presença em diferentes habitats deixam questionamentos sobre as razões do seu desaparecimento da Terra. Mas não há como fugirmos de um fato: eles saem de cena quando nós – os sábios, os sapiens – entramos nela. Ao expandir seus limites pelo planeta, o homem moderno fez desaparecer todas as outras formas humanas.

Nesses dias de convivência diária com as notícias da devastação ambiental e dos horrores das guerras, quando vemos os “homens sábios” usarem sua sofisticada tecnologia da e para a morte, quando a não aceitação do diferente e quando o poder e a sua concupiscência levam aos extremos a capacidade de destruição aprendida e conquistada pelo Homo sapiens é urgente nos perguntarmos: “o que nos faz, de fato, humanos”?

Iara Brasileiro

Iara Brasileiro

Professora da Universidade de Brasília. Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Laboratório de Estudos em Turismo e Sustentabilidade (LETS/UnB).
Brasília