Sustentabilidade na preservação do patrimônio cultural. O sentido da Convenção do Patrimônio Mundial de 1972 da Unesco e a contribuição brasileira nas últimas décadas

Passados 50 anos do estabelecimento da Convenção do Patrimônio Mundial, cabe refletir e avaliar sua contribuição para a humanidade diante de processos cada vez mais acelerados de transformação das sociedades e do próprio planeta, nem sempre condizentes com o futuro que se pode desejar e alcançar em termos de bem-estar duradouro.  Como uma guia condutora de procedimentos que vêm orientando nações na valorização de seu patrimônio, seja cultural, natural ou misto, enquanto via para o registro, compreensão e difusão do processo civilizatório da humanidade, a Convenção do Patrimônio Mundial tem adquirido ao longo de sua trajetória sentidos vários, conforme e segundo as necessidades, preceitos e estágios de amadurecimento societário e institucional em cada país que a adotou em seu arcabouço normativo nacional.

No caso brasileiro, as iniciativas nacionais em prol da salvaguarda  do patrimônio é anterior à Convenção e se estabelece a partir de uma lógica de pensadores e intelectuais brasileiros que visavam à modernidade do país e entenderam que a conjugação com a tradição era fundamental para estabelecer os rumos do desenvolvimento desejado, ou seja, já se encontrava presente o gérmen de uma perspectiva sustentável para a preservação do patrimônio cultural do país, reconhecendo os valores culturais como uma alavanca para imprimir um desenvolvimento socialmente justo, ambientalmente adequado e culturalmente diversificado.

Os princípios básicos que nortearam a instituição da referida Convenção como um instrumento legalmente vinculativo que estabeleceu um quadro intergovernamental de cooperação internacional, a partir do caso de Assuã, no Egito, nos anos 1960, com o movimento internacional encabeçado pela Unesco, de proteção dos templos de Abu Simbel que seriam submersos com a construção da represa que se fazia necessária ao povo egípcio, favoreceram a criação de um mecanismo e de um instrumento de arbitragem internacional que pudessem mediar o processo de crescimento econômico, imprimindo parâmetros reguladores que inserissem nas pautas de desenvolvimento a cultura e a natureza como variáveis indispensáveis para a tomada de decisões sobre quais rumos e modelos de desenvolvimento adotar. É com esse espírito que se instalam o Comitê do Patrimônio Mundial e a própria Convenção, que ratificada pelos países, passaram a normatizar, em maior ou em menor grau, as práticas que são promovidas para a preservação e salvaguarda do patrimônio, seja cultural, natural ou misto. Cabe destacar que o Centro do Patrimônio Mundial é criado 20 anos após, em 1992, como organismo autônomo do Secretariado da Unesco para gerir administrativamente todos os assuntos relacionados com a Convenção e, com o auxílio dos órgãos consultivos, gerir tecnicamente a sua aplicação.

O Brasil ratifica a Convenção em 1977, cinco anos após a sua adoção pela Unesco, e três anos após, tem inscrito o seu primeiro bem cultural, a cidade de Ouro Preto, marco do barroco no hemisfério sul e importante referência do período colonial do país para mundo. As primeiras inscrições de sítios brasileiros à Lista do Patrimônio Mundial seguem a lógica que já subsistia no âmbito da política nacional. Assim, outros sítios históricos urbanos são incorporados, como os centros históricos de Olinda e Salvador, além de um sítio arqueológico – as Ruínas de São Miguel das Missões no sul do país e o conjunto arquitetônico do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, MG, até a inscrição de Brasília, em 1987, como patrimônio moderno, o que ocorre dez anos após a ratificação brasileira, cuja inscrição inaugura uma realidade que se vê expressa, à época, diante dos 50 anos de implementação das políticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil, que teve seus inícios em 1937 com a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN e com a instituição do tombamento como instrumento de reconhecimento nacional, momento em que novos desafios vão se delineando e os resultados alcançados se tornando referências para o mundo.

As candidaturas que se seguem vão encontrando eco, ao mobilizarem atores diversos e manifestar outros marcos de referência que vão possibilitando o Brasil se mostrar mais, por inteiro para si mesmo e para mundo e, no âmbito externo, suas propostas de candidatura se identificarem e se coadunarem cada vez mais com as estratégias globais estabelecidas em 1994, as quais expressavam necessidades de tornar mais representativa, equilibrada e de maior credibilidade a Lista do Patrimônio Mundial. Estudo realizado pelo ICOMOS entre 1987 e 1993 já revelava que a Europa, as cidades históricas, os monumentos religiosos do cristianismo e a arquitetura erudita se encontravam excessivamente representados na referida Lista, enquanto as culturas vivas e sobretudo as chamadas “culturas tradicionais” estavam ainda pouco representadas.

Para o Brasil, nessa política de reconhecimento, proteção e valorização dos bens culturais brasileiros, sempre estiveram presentes os aspectos qualitativos, acima dos quantitativos, em matéria de presença e contribuição à referida Convenção e à Lista do Patrimônio Mundial. O Brasil buscou dar assistência ao processo de implementação e consolidação da própria Convenção e ao mesmo tempo atualizar a política nacional, seja no avanço conceitual acerca da noção de patrimônio, das práticas de gestão dos bens reconhecidos e dos instrumentos aplicados à medida das realidades existentes no país. As preocupações com as formas de apropriação desses sítios reconhecidos, como a do consumo turístico, vêm ganhando destaque, diante do potencial que esses sítios possuem e sua capacidade operativa de proporcionar dinâmicas econômicas, sociais, educativas e culturais que, por meio do turismo, se bem trabalhadas, podem gerar em prol desse patrimônio e das suas populações detentoras.

Assim, as iniciativas brasileiras carregavam no seu DNA uma preocupação notória com a sustentabilidade das iniciativas que se buscavam empreender enquanto política de reconhecimento de bens culturais e sua consequente gestão. Isto se vê com a apresentação da candidatura da cidade de Goiás e que se reitera com as candidaturas da Praça São Francisco em São Cristóvão, da paisagem cultural urbana do Rio de Janeiro, do Conjunto Moderno da Pampulha, do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo, de Paraty e Ilha Grande e do Sítio Roberto Burle Marx, das quais tive a grata satisfação de ser parte integrante da equipe nacional.  Todas elas enfrentaram os desafios e obstáculos que tais candidaturas representam, explorando todas as oportunidades possíveis que o processo de reconhecimento ensejou e, consequentemente, que as práticas de gestão decorrentes demandaram.

A cidade de Goiás expressou os desafios do reconhecimento da arquitetura vernacular em contraposição à arquitetura monumental, em um contexto de intensa participação local e de motivação político-institucional, apoiada em uma ação concertada e compartilhada, proporcionando melhorias urbanas, como saneamento básico, embutimento de fiação aérea de iluminação pública e restauração de monumentos. A Praça São Francisco em São Cristóvão, enfatizou a necessidade de novas leituras territoriais em função de contextos históricos pouco abordados quando analisados transversalmente como os referentes às Américas espanhola e portuguesa, destacando a oportunidade para promoção de espaços urbanos desvitalizados.  As paisagens cariocas entre a montanha e o mar, expressas na cidade do Rio de Janeiro, puseram em evidência a efetiva aplicação do conceito de paisagem cultural em contexto urbano, constituindo-se na primeira paisagem cultural urbana declarada no mundo, além de expressar o desafio da gestão compartilhada entre agentes públicos e sociedade na busca de práticas de gestão que demandam a convergência na aplicação de instrumentos de gestão territorial, sejam urbanísticos, ambientais e culturais.  O Conjunto Moderno da Pampulha, em Belo Horizonte, acelerou processos com vistas à melhoria das condições ambientais do sítio, em especial, a Lagoa da Pampulha, além de proporcionar uma atuação mais transversal e coordenada entre agentes da administração municipal na área e uma promoção sem precedentes do setor privado em associar sua marca ao sítio declarado, expressando imenso potencial que os sítios do Patrimônio Mundial possuem em gerar novos investimentos. Já o Cais do Valongo, como sítio de memória sensível, trouxe à tona um tema por demais importante a ser figurado na Lista do Patrimônio Mundial, por sua transcendência física, enquanto sítio arqueológico, para um lugar de memória e incentivo à valorização e autodeterminação de afrodescendentes no Brasil e no mundo. Paraty e Ilha Grande expressam o desafio de gerir um sítio misto composto por assentamentos humanos vivos em uma paisagem natural exuberante e exemplar, adotando o conceito de sistema cultural para articular esses assentamentos num território, ocupado e configurado mediante layers específicos, requisitando uma gestão territorial integrada onde cultura e natureza são lados de uma mesma moeda. E, por último, o Sítio Roberto Burle Marx, expressando as ideias de seu criador e destacando o conceito de jardim tropical moderno, cujos princípios seguem influenciando o campo do paisagismo no Brasil e no mundo.

Nessa atuação de reconhecimento e gestão, ao longo desses últimos vinte anos, destaca-se a  representatividade para além da excepcionalidade do bem cultural em uma perspectiva de sustentabilidade, com releituras compreensivas sobre os bens apresentados, e das práticas de gestão dos bens reconhecidos, por meio da governança constituída e dos instrumentos aplicados, vindo a se tornar referenciais para o aprimoramento das políticas internas de patrimônio cultural no Brasil, em especial no que ficou estabelecido na Política de Patrimônio Material adotada pelo IPHAN em 2018.

Por fim, caberia destacar as intenções brasileiras de propor, em seus discursos e posicionamentos, enquanto membro do Comitê do Patrimônio Mundial, em 2010, durante a sua 34ª Sessão, em Brasília, o estabelecimento da 6ª “C” de “Cooperação” para ser considerada junto aos demais objetivos estratégicos da Convenção, quais sejam, Credibilidade, Conservação, Capacitação, Comunicação e Comunidades, um desafio por ser mais bem enfrentado no Brasil e pelos países que ratificaram a Convenção do Patrimônio Mundial nos próximos anos.

Referências Bibliográficas

ICOMOS. El informe de la reunión de expertos sobre la “Estrategia Global” y los estudios temáticos para una Lista del Patrimonio Mundial representativa. Phuket, 1994.

IPHAN. Patrimônio mundial: fundamentos para seu reconhecimento – A convenção sobre proteção do patrimônio mundial, cultural e natural, de 1972: para saber o essencial. Brasília, 2008.

IPHAN. Política do Patrimônio Cultural Material. Brasília, 2018.

UNESCO Brasil. IPHAN. Gestão do Patrimônio Mundial cultural. Manual de referência do patrimônio mundial. Brasília, 2016.

UNESCO. Convention concerning the Protection of the World Cultural and Natural Heritage. Paris, 1972.

UNESCO. WHC. Operational Guidelines for the Implementation of the World Heritage Convention. Paris, 2021.

Créditos da Foto:
Centro Histórico de Paraty, Patrimônio Mundial.
Oscar Liberal
Marcelo Brito

Marcelo Brito

Diretor da Patrimonium & Urbs Consultoria e Serviços Técnicos Especializados. Doutor em Gestão Urbana, com Pós-Doutorado em “Turismo, Patrimônio e Desenvolvimento”. Pesquisador do LETS.