PROSPECTIVA E TURISMO: a introdução

Essas são breves notas que iniciam uma pequena coletânea formada por três artigos, incluído este. Aqui falaremos sobre a relevância do estudo prospectivo para enfrentar o futuro incerto, arriscado e desafiante que teremos pela frente, nas próximas décadas. As mudanças no século XXI serão, provavelmente, maiores do que todas as mudanças anteriores da história humana. Na sequencia deste artigo analisaremos as tendências prováveis do turismo nas próximas duas décadas, para finalizar com um exercício de focalização na Bahia 2035. São notas simples e, se possível, didáticas. Úteis para quem está iniciando a pensar o futuro do turismo no Brasil. E uma pequena homenagem às minhas orientandas e orientandos, além de colegas, que criaram e animam atualmente o LETS, e viverão as décadas seguintes, enfrentando, com a coragem que lhes é peculiar, seus desafios.

Os planejadores e estudiosos da prospectiva costumam dizer que 2035 é amanhã, que o futuro já chegou. Claro que são expressões de marketing, construídas para chamar atenção. Em última instância, buscam produzir efeitos mediáticos. 2035 não está ali na esquina, dele nos separam cerca de 12 anos. Contudo, têm um quê de verdade. Grande parte do que ocorrerá até 2035 já está contratado. Provavelmente as tendências hoje identificadas ocorrerão, como por exemplo: a diminuição do ritmo do crescimento demográfico, o aumento da velocidade da transição energética, a expansão do uso da inteligência artificial, o crescimento maior dos países emergentes comparativamente aos países desenvolvidos, a centralidade da economia no oceano Pacífico, a melhoria medíocre da educação no Brasil (infelizmente), as tensões internacionais, com guerras e desorganização das cadeias de valor, o crescimento do turismo de natureza, em suas várias modalidades etc. Porém, mesmo que algumas dessas previsões ocorram, elas exprimem tendências, e, como diz o ditado popular:  “tendência não é destino”. Tendência é algo que poderá ocorrer ou não. Algumas são revestidas de muita incerteza e outras de pouca. De toda forma, os humanos não são dotados da capacidade de antevisão, salvo em situações especiais. Não conseguimos prever a queda do muro de Berlim em 1989, nem o ataque às torres gêmeas nos Estados Unidos em 2001. Verdade que meia dúzia de economistas anunciaram nos anos iniciais do século XXI que estávamos caminhando para uma crise econômica, mas a esmagadora maioria foi pega de surpresa pela crise econômico-financeira de 2008/2009. Pouquíssimos pensadores, no início deste século, entre eles Morin e Bill Gates, previram que uma pandemia de envergadura deveria acontecer entre nós a qualquer momento. Essa incapacidade de previsão ocorre porque, não podemos esquecer, o futuro é a morada privilegiada da incerteza. Quem poderia prever, em 1980, que a China seria a segunda potência mundial 40 anos depois? Ou a atual invasão da Ucrânia pela Rússia, há três anos?

Cerca de 12 anos nos separam de 2035 e algumas coisas podem ocorrer mudando completamente a expectativa atual. As inovações tecnológicas podem nos surpreender, principalmente nos campos da inteligência artificial, da biotecnologia, dos novos materiais, da saúde. Até 2035 poderemos ter uma guerra nuclear parcial, que parece até uma contradição nos termos; poderemos ter as duas potências da nova guerra mundial sob regimes autoritários eleitorais[1](caso dos Estados Unidos com Trump), com influência sobre outros países; ou uma migração ecológica gigantesca no mundo. Ou coisas mais simples, porém impactantes, como a redução dos custos da dessalinização das águas do Oceano, com destinação correta dos dejetos (“e o sertão vai virar mar”), o controle da fusão nuclear, ou o aquecimento global entrar em processo de retroalimentação, ou mesmo, para nos aproximarmos da ficção cientifica, o contato com uma civilização extraterreste. Quase tudo é possível em um mundo de tão velozes mudanças tecnológicas e sobre o qual temos conhecimentos precários e parciais.

O Brasil por sua vez poderá se manter, como o faz há quarenta anos, como um país de economia média, com um dos piores sistemas educacionais entre os países emergentes (sem citar os desenvolvidos); destruindo seus dois capitais mais preciosos: o ser humano e sua cobertura vegetal; mantendo a insegurança jurídica. Além de fenômenos mais recentes como a expansão do narcotráfico e a criminalidade em médias cidades (Ilhéus é a cidade de mais alta mortalidade por 100 mil habitantes hoje no País). O Brasil é um país que mata alguns de seus futuros talentos, com o assassinato de jovens, sobretudo da periferia, e perde talentos emergentes, que migram para outros países, pois aqui não tem o terreno fértil para desenvolver suas habilidades. Além de afastar outros, como os investidores. Mas, poderá mudar de rumo. Estimular a transição energética, que poderá ser exemplar para o mundo, e nos tornarmos exportadores de energia; desenvolver a bioeconomia, deixando nossas florestas em pé, rendendo melhores condições de vida para seus habitantes e uma boa imagem internacional para o país, atraindo investidores, além de assegurar os evidentes serviços ecossistêmicos produzidos pelas florestas; controlar e reduzir a criminalidade e o narcotráfico, e em especial, produzindo uma revolução em nosso sistema educacional. Neste cenário, estaremos em 2035 em transição para um país diferente, comprometido com a construção da sustentabilidade mundial e mudando de patamar; reduzindo a desigualdade e eliminando a pobreza.

Apesar da incerteza estar ocupando um lugar de destaque em nossas prospectivas, e de Morin nos dizer que “o mais provável no futuro é que ocorra o improvável” (Morin, 1981:23), e Taleb (2008) de que “Devemos esperar o inesperado”. E apesar de os “cisnes negros”[2]destruírem constantemente nossas previsões, não podemos viver sem prospectar o futuro, não necessariamente com previsões. Afinal, em algumas áreas do conhecimento conseguimos ampliar esta capacidade de previsão, como na meteorologia (Silver, 2013), mas em diversas outras somos uma nulidade, como na economia, na qual os economistas não conseguem fazer previsões nem para o ano seguinte, quanto mais para a década seguinte.

No entanto, apesar de nossos limites prospectivos, persistimos no exercício da antecipação. Primeiro, porque nos dá conforto (temos uma agradável sensação de controle da situação) e, segundo, porque conseguimos antecipar algumas coisas e nos preparamos para elas. Sobretudo se conseguirmos fazer cenários robustos. Como diz Randers (2012:8): “É mais simples preparar-se para o futuro se você começa por imaginar como será”.

Temos, no entanto, algumas dificuldades estruturais para pensar o futuro, das quais devemos tomar consciência e na medida do possível nos precavermos. Tendemos a aprender o especifico e não o geral. Damos valor ao que sabemos e desprezamos o que não sabemos, e são estes os decisivos, como diz Ortega y Gasset: “No sabemos lo que passa y eso es lo que se passa”.

Não somos dotados para apreender lógicas, dinâmicas ou leis, somos aptos para aprender fatos e narrativas. Somos avessos a pensar a complexidade e a aleatoriedade. A complexidade nos confunde e a aleatoriedade nos desconforta. Adoramos as narrativas porque elas tornam o mundo simples, previsível e confortável.  Preferimos o normal ao extraordinário, para pensar o futuro, e aí erramos. A maioria das mudanças não ocorreu resultado de planejamento, mas de “cisnes negros”, eventos ou processos relativamente desconhecidos ou desprezados. A TV, o computador e a internet, em seu nascedouro, foram objeto de opiniões completamente errôneas de grandes empresários e cientistas; objeto de ironias e deboche por parte desses personagens.

As mudanças ocorrem como resultado de fatos, decorrentes de nossas decisões. Porém, raramente temos noção do conjunto de consequências dessas decisões, pois elas são tomadas em função da visão que temos do mundo, do qual, aliás, temos pouca consciência; são tomadas em contextos determinados e estes não nascem do dia para a noite, se formam aos poucos, processualmente. E deles tomamos conhecimento tardiamente. Por exemplo, o padrão de desenvolvimento (e de pensamento) que nos dominou nos últimos 100 anos foi o do crescimento econômico como sinônimo de felicidade, medido pelo desempenho do PIB. Este é o padrão que alimenta a emergência climática que está nos levando a um mundo de sofrimento e morte. Não conseguimos até hoje adotar um novo padrão, o da sustentabilidade como sinônimo de felicidade, sinalizado ainda nos anos 1970. Contudo, até hoje não plenamente aceito. Esta percepção consta do livro de maior sucesso após a Segunda Guerra Mundial, publicado em 1972 – Os limites do crescimento. Seu ensinamento básico é de que o mundo está preparado para crescer até a fase de ultrapassagem da disponibilidade de seus recursos naturais, e nela não se pode permanecer muito tempo, pois o resultado será o colapso.  E qual a alternativa? Dizem os Meadows  e seus colabordores: a desaceleração organizada.

Os humanos são lentos para compreender e agir em grandes questões, sobretudo se complexas como as mudanças climáticas. Foram gastos 40 anos para as sociedades humanas tomarem consciência do problema (1972-2012). Não o compreendendo plenamente resolveram adotar uma solução bizarra: a aceleração organizada, com o nome de desenvolvimento sustentável, com denominações particulares como economia verde, ODS[3], ESG etc. Em meio a uma intensa campanha negacionista: “mudança climática não existe”, “o clima muda sempre”; “as mudanças climáticas não dependem das atividades humanas, são resultados de processos naturais”; “é uma invenção do imperialismo para impedir nosso desenvolvimento”, dizem os negacionistas, entre outras afirmações bizarras. Só agora, que as mudanças climáticas começam a ganhar foros de uma emergência climática, no momento em que os seus efeitos ganham maior visibilidade e provocam maiores mazelas, é que as sociedades humanas começam a se preocupar diferentemente com o problema e desconfiar que as soluções adotadas não o resolvem. Durante 30 anos aplicaram as mesmas medidas esperando resultados diferentes: o crescimento dos gases de efeito estufa na atmosfera não parou de crescer. Mas, entre a consciência do problema, a sua plena compreensão, a adoção de novas medidas e suas implantações, devem se passar ainda algumas décadas. O risco maior é que a mudança climática ganhe voo próprio, ou seja, se autorreproduza em níveis mais elevados com a liberação de novos gases nas regiões polares. O risco de colapso aumentará sem dúvida, porém, provavelmente não deve ocorrer em 2035, mas em seguida, talvez na década de 2040 ou na de 2050.

Em face dessas considerações, como trabalhar com o pensamento prospectivo? Certamente não será com previsões, absolutamente inócuas, sobretudo a longo prazo. A técnica de cenários, quando bem utilizada pode ser útil. Mas, especialmente, se observamos as ameaças e oportunidades contidas nos diversos cenários construídos como possíveis. E sempre atentos aos imprevistos. Por exemplo: a fusão nuclear. Caso a controlemos ao nível de ser possível comercializá-la e disseminá-la teremos transformações profundas na transição energética, com uma mudança substantiva no campo da crise ecológica e sua ponta de iceberg, as mudanças climáticas. Um verdadeiro cisne negro, hoje absolutamente desprezado pela maior parte dos políticos e instituições politicas. Portanto, o essencial é: identificadas as tendências, imaginar suas repercussões em termos de ameaças e oportunidades.

Supondo que as mudanças climáticas não vão se agravar em demasia, que não teremos uma guerra nuclear destrutiva ou uma pandemia de alta letalidade (visão otmista do futuro) é possível pensar várias coisas interessantes, inclusive a evolução do turismo no território nacional. Quais as tendências mundiais mais robustas? Como essas tendências se comportarão em um quadro de emergência climática? E no caso da adoção de um novo padrão de evolução (a sustentabilidade como centro, e não mais o crescimento do PIB), quais medidas serão adotadas, quais transformações serão provocadas? Estas e outras questões, tendo o turismo como pano de fundo, serão o objeto das próximas notas.

Algumas referências

Morin, Edgar. Pour sortir du XXe siècle. Paris: Fernand Nathan, 1981

Taleb, Nicholas Nassim. A lógica do cisne negro. O impacto do altamente improvável. Gerenciando o desconhecido. Rio de Janeiro: Best Seller, 2008.

Meadows, Daniela; Meadows, Denis; Randers, Jorgen e Behrens III, Willian W. Os limites do crescimento. São Paulo: Perspectivas, 1972.

Randers, Jorgen. 2052. Uma previsão global para os próximos quarenta anos. Chelsea Green Publishing, 2012. Prefácio à edição brasileira de Heitor Gurgulino de Souza



[1] Expressão utilizada para denominar alguns regimes autoritários como os da China, Venezuela, Hungria, Turquia, Irã, que se reproduzem mediante eleições, com ou sem partidos opositores.

[2] “Cisnes negros” são para Taleb (2008:14) um outlier – dados espúrios de uma amostra estatística; aquilo que não prevemos ou para o qual não damos a devida atenção. Ou então, a não ocorrência de um evento ou tendência que aguardamos.

[3] Entre os seus 17 objetivos encontra-se estranhamente o do crescimento econômico sustentável que Nicholas Georgescu-Roegen, Herman Daly, Randers e Clóvis Cavalcanti, demostraram claramente tratar-se de algo inviável. Na expressão de Serge Latouche – um oxímoro.