Por um sistema único de patrimônio: em busca de uma governança sustentável
Vivemos de espasmos. Essa afirmação poderia ser feita, é quase certo, por qualquer profissional que atua no campo da preservação do patrimônio cultural no Brasil.
Depois do 8 de janeiro de 2023, o 5 de fevereiro de 2025 pode ser uma nova oportunidade de ouro para se colocar em evidência a pauta do patrimônio e reposicioná-la, finalmente, no país. Será?!
Outros eventos catastróficos, por exemplo, poderiam ser aqui também elencados: o do 2 de setembro (2018), quando o Museu Nacional do Rio de Janeiro sofreu a tragédia do incêndio em suas instalações destruindo quase todo o acervo histórico e científico ali existente, de cerca de 20 milhões de itens. E quem se lembra do caso da Matriz do Rosário, em Pirenópolis, Goiás, do incêndio de 5 de setembro (2002)? Dois casos, apenas para dar ênfase a essa triste realidade que vivemos no país.
Essas tragédias, por si só, já deveriam nos levar a reflexões sobre nossa compreensão de país e de nação, sob o olhar das mais diferentes perspectivas, acerca da governança existente nesse campo da ação da política pública no Brasil, desde a economia até a cultura, passando pelas políticas setoriais que são transversais a esse campo, pelo arcabouço legal que lhe dá sustentação e, naturalmente, pelo entendimento que temos de nós mesmos, brasileiros, como indivíduos e como grupos que compõem a sociedade brasileira.
Ao considerarmos esses fatos mencionados, podemos alinhavar aqui alguns paralelos do que vemos no Brasil no que se refere à governança do patrimônio cultural.
Iniciemos com o 8 de janeiro (2023), quando houve uma tentativa frustrada de golpe de Estado no Brasil, com ataques às sedes dos Três Poderes em Brasília, ocasião em que o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal foram invadidos e vandalizados em atos amplamente condenados, nacional e internacionalmente. Naquele dia, assistimos estarrecidos pela TV as tentativas de destruição tanto dos prédios como de bens integrantes do acervo desses edifícios institucionais da República que integram o conjunto tombado de Brasília, reconhecido como Patrimônio Mundial pela Unesco em 1987, sendo os dois últimos tombados individualmente em nível federal.
Subtraindo aqui outros tantos sinistros, pouco noticiados, que possam ter ocorrido nesse interregno, chegamos ao 5 de fevereiro (2025), quando ocorreu o desabamento do forro do teto da Igreja de São Francisco de Assis, um dos mais importantes exemplares do barroco brasileiro, conhecida como “Igreja de Ouro”, bem tombado em nível federal que integra o Centro Histórico de Salvador, sítio declarado pela Unesco em 1985 como Patrimônio Mundial. O incidente resultou na morte de uma pessoa e deixou feridas outras cinco que realizavam visita turística ao monumento.
Esses ocorridos, que poderíamos enquadrar como sinistros, constituem-se em eventos ou ocorrências que causam prejuízos, danos ou perdas. No caso do patrimônio cultural material, que se reportam a edificações de interesse histórico em especial, essas ocorrências podem dar-se, entre outros, em função de desastres naturais, atos de vandalismo, negligência e abandono e processos danosos de desenvolvimento urbano e modernização, com consequências, em certos casos, irreparáveis.
Mas, o que se pode extrair dos acontecimentos em tela? A questão do patrimônio cultural é assunto bastante complexo e poderia ser analisado por diversos ângulos. Diante do arcabouço legal e gerencial existente no Brasil, e de exemplos como esses, por que esses sinistros seguem ocorrendo no país?
Seria necessário abordar o tema considerando ao menos quatro pontos fundamentais:
1- O significado do reconhecimento: para que, para quem e por que se reconhecem bens de interesse cultural?
2- As consequências imediatas do reconhecimento: qual a Responsabilização e a Visibilização desses bens reconhecidos para a sociedade como um todo?
3- Os desdobramentos do reconhecimento: qual dinamização econômica, social e cultural resultante e onde o Turismo e a Valorização Identitária entram nessa equação?
4- Os questionamentos (de/re)correntes do reconhecimento: como estamos e para onde vamos?
De modo sucinto, mas sem perder de vista o foco central de cada questão assinalada, do ponto de vista do significado do reconhecimento, a identificação de bens culturais da sociedade brasileira e a valorização desses bens identificados consolidou-se no país como um processo territorialmente fragmentado e estratificado, a partir das instâncias político-administrativas do Estado brasileiro. Isto com base nos fatos de relevância para história local, regional, nacional ou mesmo internacional. Por outro lado, nem todos os aspectos da história, em especial, dos envolvidos nessa trajetória foram devidamente considerados. Assim, a ausência de sujeitos e de seus lugares de fala em narrativas registradas a partir das manifestações materiais reconhecidas deixam lacunas para a compreensão mais integral do processo civilizatório do país que nos permita entender quem somos e por que somos como somos. Daí não haver, muitas vezes, conexão e ressonância de grupos formadores da sociedade brasileira com o acervo de bens que foram nessa trajetória de patrimonialização de bens culturais no país protegidos e declarados Patrimônio. Assim, sem maiores delongas, preservamos o que conhecemos, amamos e nos identificamos como referência cultural nossa. Fora disso, é puro desejo de uns. Daí ser importante seguir identificando e reconhecendo bens culturais no país. Mas, esse processo precisa ser revisitado e restruturado, a fim de sanar essas pendências, por assim dizer.
Das consequências imediatas desse processo de reconhecimento como tal, fica evidente que, tradicionalmente, por força de uma imperante visão verticalizada e descendente onde tudo tende a operar dos níveis mais altos para os mais baixos da estrutura organizacional do Estado e da sociedade brasileiros, as decisões adotadas ou as ações realizadas no topo afetam ou deixam de afetar, negligenciando, os seus demais níveis. Assim, ou se focalizam determinados atores como os estritamente responsáveis por assegurar e manter os bens culturais reconhecidos, como é o que sucede no Brasil no caso do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, ou em situação de sinistro que incidem sobre os bens culturais patrimonializados, a caracterização de “sujeitos ocultos” ou, muitas vezes, “sujeitos indeterminados”, pela falta de clareza sobre a quem cabe o que na responsabilização quando se trata de preservar o patrimônio cultural nas localidades, seja em qual esfera de reconhecimento for.
Assim, os processos de visibilização necessários, ao menos, em decorrência desse reconhecimento, evidenciam a importância dos processos de comunicação e de construção de diálogos entre a cidadania e os bens culturais patrimonializados, onde os processo de educativos e de sensibilização comunitária são estratégias fundamentais para a consolidação das conexões antes mencionadas para a geração das sinergias de pertencimento e de apropriação por parte da sociedade em seu conjunto daqueles bens que passaram a integrar o acervo patrimonial do país. Deste modo, sem subterfúgios, quem não é visto não é lembrado e para ser lembrado é preciso instar quem o vê, o que pressupõe interpretação em linguagens que considerem os diversos públicos que venham a acessar os bens culturais patrimonializados. Para tanto, uma matriz de responsabilidades, identificando papéis e compromissos de cada agente envolvido ou a envolver, construída consensualmente entre todos, constitui em ferramenta essencial para a supressão de disfuncionalidades gerenciais sobre o patrimônio cultural protegido.
Naturalmente, em decorrência de como cada bem cultural patrimonializado é tratado, os possíveis desdobramentos de seu reconhecimento podem ter resultados diferenciados, que podem ir, por exemplo, desde a sua valorização imobiliária ou depreciação edilícia, proporcionando ora processos de gentrificação – enobrecimento de lugares – até o abandono e esvaziamento funcional de zonas que se degradam – tugurização. A depender disso, esse acervo patrimonial passa a ser apropriado mais ou menos fortemente pela gestão turística, constituindo-se adequadamente ou não em produtos turísticos que podem ou não gerar benefícios para os detentores desse patrimônio e para as áreas onde eles se localizam, transmitindo ou não uma mensagem adequada e desejável desse patrimônio como atrativo turístico. Dessa forma, o turismo como atividade econômica e sociocultural entre nessa equação como um fator que pode mobilizar meios para assegurar consorciadamente a preservação e em decorrência o desfrute desse patrimônio por visitantes, além dos residentes. Os valores identitários, igualmente, entram nessa equação, de modo positivo ou negativo, quando essa mensagem, na ocasião em que é veiculada, expressa ou não os valores legítimos do(s) grupo(s) que compõe(m) a sociedade onde esse patrimônio se localiza. Assim, sem sombra de dúvida, enquanto o patrimônio cultural for entendido como um passivo da sociedade, seu entendimento enquanto um estorvo para o desenvolvimento, impedirá sua apropriação adequada e sustentável, gerando processos ineficazes e conflituosos de preservação patrimonial, em uma permanente e insana disputa entre agentes na sociedade por qual medida a adotar diante de processos de preservação, renovação e crescimento das localidades. Deste modo, inserir o patrimônio nas pautas do desenvolvimento local é essencial para vivenciá-lo e apropriar-se dele em sua contemporaneidade, sem a necessidade habitual de sua mera museificação.
Por último, ao refletirmos sobre como estamos e para onde estamos indo, cabe, ao menos reconhecer que o patrimônio constituído como tal é um paciente enfermo que necessita de cuidados e de uma atenção diferenciada pela enfermidade que o acomete.
Em um contexto em que há diversos agentes que atuam no âmbito da preservação do patrimônio cultural brasileiro, muitas vezes, descoordenadamente, em uma realidade de escassez de recursos para a promoção de ações voltadas à preservação desse patrimônio, verifica-se, ainda, no país, uma dispersão de esforços e de aplicação de recursos que têm resultado, comumente, em pouca efetividade nas ações empreendidas. A pouca adoção de práticas que promovam uma maior sincronia interfederativa e uma maior participação na relação entre o Estado e a sociedade corrobora ainda mais para agravar essa situação.
Admitindo e atestando que o patrimônio cultural da sociedade brasileira é um ativo para a promoção do seu próprio desenvolvimento, pautado na autoestima, autodeterminação e sustentabilidade, essa situação recorrente se constitui no maior desafio para o campo da política de preservação do patrimonio cultural brasileiro na atualidade.
Assim, para um paciente enfermo, diante da complexidade da enfermidade diagnosticada, um “salto de fé raciocinada” e medidas corajosas são demandadas em busca de uma governança sustentável. Para tanto, acreditamos que o Sistema Único de Saúde (SUS) aponta caminhos que poderiam ser adotados para o campo do patrimônio cultural, para analogicamente, inspirar a implantação do Sistema Único de Patrimônio (SUP).
Deste modo, fazendo uma analogia entre os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e a preservação do Patrimônio Cultural, poderíamos explorar o que segue[1]:
1. Universalidade: Assim como o SUS assegura que todos os cidadãos tenham direito à saúde, o Patrimônio Cultural deve ser acessível a todas as pessoas, garantindo que todos possam usufruir, conhecer e valorizar a herança cultural, independentemente de classe social, etnia ou localização geográfica, para além de outros aspectos que poderiam ainda ser considerados.
2. Integralidade: O Patrimônio Cultural deve ser preservado em sua totalidade, considerando todos os aspectos que o definem, conforme o seu valor e importância histórica, cultural, científica, artística e social, entre outros, o que inclui a conservação de monumentos, a valorização de tradições, práticas culturais e saberes populares, assim como o SUS cuida da saúde de maneira abrangente, cobrindo prevenção, tratamento e reabilitação.
3. Equidade: A valorização e preservação do Patrimônio Cultural devem ser feitas de forma equitativa, ou seja, justa e imparcial, reconhecendo e respeitando a diversidade cultural existente. É necessário garantir que todas as culturas e tradições sejam preservadas e valorizadas, promovendo justiça social e cultural em nome da diversidade e pluralidade existente na sociedade brasileira, assim como o SUS busca atender às necessidades específicas de cada indivíduo de forma justa e adequada.
4. Descentralização: A gestão do Patrimônio Cultural deve ser descentralizada, com responsabilidades compartilhadas entre diferentes níveis de governo e a comunidade local. A participação de diversas esferas garante uma gestão mais eficaz e democrática, similar à gestão descentralizada do SUS.
5. Participação Social: A sociedade deve estar envolvida na preservação do Patrimônio Cultural, participando ativamente das decisões e ações de preservação. Isso fortalece o senso de pertencimento e responsabilidade coletiva, assim como a participação social é essencial no SUS para a formulação de políticas de saúde.
Essa analogia busca destacar, de modo sucinto, a importância de princípios inclusivos, abrangentes e participativos existentes tanto na saúde quanto na preservação do patrimônio cultural, passíveis de promover o bem-estar da população e a valorização de nossas referências culturais.
Esse exercício instiga a investigar e refletir sobre o que seria necessário para torná-lo realidade. Fica aqui o registro como ponto de partida e referência.
Foto: Brito, Marcelo (2024).
[1] A partir dos instrumentos legais vigentes que instituíram e implementaram o SUS – Sistema Único de Saúde, quais sejam: 1) Constituição Federal de 1988; 2) Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990); 3) Lei complementar que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS (Lei nº 8.142/1990); 4) Decreto de regulamentação da Lei nº 8.080/1990, para a organização do SUS, o planejamento das políticas de saúde, a assistência à saúde e articulação interfederativa.