Rally do Sertões: minha vida é andar por esse país...
Desde recém-nascida, a estrada está presente na minha vida, literalmente. Meus pais sempre viajavam com meus avós paternos nas férias de janeiro para Piçarras, uma praia em Santa Catarina. Eis que nasci em janeiro e meu pai esperou 15 dias, me colocou no Karmann Ghia, com minha mãe desesperada em pegar a estrada com uma bebê tão nova, mas aí começou, inconscientemente, meu amor pela estrada, pelos carros e pelo mar.
Essa introdução é apenas para vocês saberem que um dos maiores desafios pessoais e profissionais da minha vida, enfrentado em 2022, faz parte das minhas memórias mais inconscientes de criança.
Em março de 2022, recebi o convite de uma profissional maravilhosa do turismo, que conhecia desde 2006 quando ela foi promover o estado do Goiás em Madri, onde eu atuava pela EMBRATUR. Ela simplesmente me convidou para assumir a gestão das Expedições Sertões Turismo e Aventura do Rally do Sertões edição comemorativa de 30 anos. Naquele momento, fui pesquisar sobre operadoras de Off Road no Brasil e para a minha surpresa, existem várias empresas que atuam há muitos anos no mercado, tanto de carros como de motos.
Aceitei o desafio para implementar um novo modelo de gestão das Expedições, mas o grande detalhe, vou contar para vocês, era que essa edição não seria de 7 dias como normalmente. Seriam 15 dias de estrada, mais de 8.000 km, saindo de Foz do Iguaçu no Paraná e chegando em Salinópolis no Pará.
Sim, eu fiz o maior Rally do mundo em 2022!
Foram 5 meses de intensa preparação, como todo grande evento e, minha função era atender às demandas dos 9 operadores de Offroad homologados pelo Sertões responsáveis pela operação das expedições, coordenar a comunicação, promoção e logística das expedições, inclusive durante todo o Rally. Cada operador criou o seu pacote, uns fizeram só o trecho sul que ia de Foz do Iguaçu até Palmas, outros fizeram só o trecho norte, que foi de Palmas até Salinópolis e outros o trecho completo, de Foz até Salinópolis. Extremamente cansativo, mas recompensador.
Para acompanhar e checar a qualidade do serviço, eu fiz cada etapa com uma operadora de carro 4x4, vivenciando a experiência como se fosse uma expedicionária. Incrível o profissionalismo desses operadores, que até trabalhar para o Sertões, eu desconhecia.
Quando fui estudar sobre turismo para exercer minha função em Madri, sempre me interessei pelos temas socioculturais, me conectei com a problemática dos impactos causados pelo turismo em comunidades, principalmente as litorâneas do nosso país. Ao aceitar esse convite, meu coração bateu mais forte porque eu iria ter a oportunidade de adentrar nos rincões mais desconhecidos e, alguns até muito conhecidos do Brasil, dessa vez pelos nossos sertões.
Eu cruzei os 5 biomas brasileiros, saindo da Mata Atlântica, passando pelo Pantanal, subindo pelo Cerrado e Caatinga até chegar na Amazônia. Cruzei também as 5 regiões, foram 8 estados e mais de 243 cidades, vilas, municípios tudo isso em veículos 4x4, acompanhando os grupos de expedicionários e os operadores que, sob minha supervisão, foram mais de 250 pessoas.
O perfil desses expedicionários era muito diverso. Apesar disso, a maioria tinha entre 50 e 59 anos, casais, alguns já aposentados. Me surpreendi positivamente em ver muitas mulheres viajando sozinhas ou com amigas, dirigindo seus carros 4x4 e até uma piloto de moto do Rio Grande do Sul que, no meio de vários homens, fez os 15 dias em uma moto África Twin, super pesada e grande. Foi incrível ver o respeito e a admiração de todos os homens da expedição que a piloto estava, tanto por ela ser mulher, como por seu desafio pessoal.
Uma das coisas que mais me marcou nesse mundo de rally foi o espírito de cooperação, tanto entre competidores, como entre voluntários e também os expedicionários e as operadoras.Cada dia dormíamos em uma cidade, acordávamos 4h-5h da manhã para pegar em média 600km a 800km de estrada para chegar à outra cidade. Foram dias intensos e sem esse espírito de cuidado e colaboração, com certeza não teríamos conseguido.
Nesse caminho, muitos atrativos turísticos foram visitados, cada um mais espetacular que o outro, como o recém-inaugurado Aquário de Campo Grande, os fervedouros do Jalapão, a Chapada das Mesas, os Cânions do Viana que ficam em Bom Jesus no Piauí, descobertos pelo rally anos atrás, e Salinópolis no Pará.
A cada trecho percorrido, uma certeza eu tinha: como nosso país é maravilhoso! paisagens iam mudando no caminho, algumas não tão agradáveis, como ver a entressafra do agronegócio, tudo descampado por km e km a fio; outras impressionantes, onde o Cerrado encontra a Caatinga.
As pessoas, ahhh as pessoas. As provas passavam pelo meio de fazendas, de comunidades, de aldeias indígenas e sempre o rally era recebido com alegria e emoção, principalmente pelas crianças. E por falar nelas, uma experiência que merece destaque e que foi a que mais me emocionou nessa trajetória foi poder ficar 3 horas com algumas famílias da comunidade de Riachão no Maranhão, enquanto assistia a prova, conversando com três meninas incríveis, a Melissa de 6 anos, a Alice de 8 anos e a Keila de 9 anos.
O que mais chamou a atenção da menor, a Melissa, é que falei pra ela que tinha uma mulher pilotando um UTV, que é um carro que parece uma aranha e corre muito. Ela só falava em querer ver a Heleninha (piloto) passar, queria saber se o carro era rosa, se ela fazia isso sozinha. Muita curiosidade em torno do que ainda é um tabu: como mulheres podem pilotar?
A Alice me contou que ela gostava de jogar futebol, mas que na escola os meninos não deixavam porque ela era menina. E ela não aceitava mas, de tanto insistir, conseguiu criar um grupo de meninas que jogam futebol, porque ela disse que não tem isso de menino pode e menina não pode. Me emocionei com essa fala dela, já tão pequena, numa comunidade afastada de tudo e já tão consciente de seus direitos.
Ela fazia inglês na escola. Sim, em Riachão no Maranhão, uma escola pública dá aula de inglês para os alunos. E ela ficou toda contente quando chamei um expedicionário americano do nosso grupo e ela falou direitinho com ele, que ficou emocionado também. Ao final das minhas três horas de conversa, elas me abraçaram e sai dessa experiência aos prantos. Minha vontade era de ficar ali por muitos dias, convivendo com aquelas pessoas tão amáveis e generosas.
Por onde passamos, as crianças com bandeiras do Brasil e as bandeiras do Sertões nos esperando e saudando. Uma energia incrível.
Posso ficar horas, dias e páginas descrevendo o que vivi nesses mais de 8.000 km, e ainda seria pouco. O mais importante de tudo isso foi descobrir que, envelhecer não é sofrido, que sim, você pode aproveitar a vida como os expedicionários que conheci; que a gente não controla nada nessa vida, que o importante é viver de corpo e alma o momento presente; que nosso país é ainda mais maravilhoso do que falam; que a gente precisa cuidar das nossas crianças, das nossas paisagens, dos municípios, porque em alguns casos se notava a total negligência do poder público até mesmo com a questão dos resíduos, rios, saneamento básico para a população; que os nossos sertões ainda precisam de muita coisa com foco em ações sociais e meio ambientais e, que a gente precisa “andar” mais pelo nosso país, sair do sofá, da biblioteca, do Google e viver a realidade do dia a dia.
Tanta coisa se aprende na estrada!
Ainda bem que meu pai me colocou naquele Karmann Ghia, porque hoje, “minha vida é andar por esse país para ver se um dia descanso feliz”. Sábios, meu pai e o nosso eterno Luiz Gonzaga.