A cidade condal, na península ibérica, desde longa data, é considerada um lugar de trocas, de forte cunho comercial. Porto aberto para o Mediterrâneo, sempre teve projeção além-mar por sua dinâmica econômica e cultural. A expressão em catalão, língua nativa falada até os dias atuais na região, que dá título a este artigo, é de origem italiana, atribuída a seus comerciantes, que diziam que a cidade era boa quando conseguiam vender os seus produtos (METROPOLI, 2024). Assim, Barcelona, querendo ou não, estigmatizou-se, ao longo do tempo, por ser um território do capital, presente, de modo mais ou menos ostensivo, nas relações socioeconômicas da cidade, no sentido de que será sempre melhor vivê-la, quando dinheiro dispuser no bolso para tanto. No entanto, adicionalmente a essa expressão, existe um dito que a complementa, nem sempre levado em conta, qual seja: “...però tant si sona com si no sona, Barcelona sempre és bona”, ou seja, a cidade sempre recebe o visitante com os braços abertos, independentemente do dinheiro que leve consigo (PADRONEL, 2014).
Dilemas à parte, é claro que aqui, neste texto, trata-se de transmitir o olhar e o sentir deste autor, diante de recente visita turística nostálgica à cidade onde viveu e que o acolheu em um determinado período de sua vida, mais precisamente, no período de preparação da cidade para os Jogos Olímpicos de 1992.
Pode-se observar que a necessidade de se projetar, de modo cada vez mais autônomo, especialmente a partir dos referidos Jogos Olímpicos, época em que o Estado espanhol passa a integrar a União Europeia, vê-se fortalecida, diante das oportunidades que foram criadas e das novas dinâmicas urbanas, sociais, econômicas e culturais que foram fomentadas na cidade. Isto favoreceu um desejo generalizado de se conhecer a cidade, que desde então, vem se intensificando exponencialmente no mundo, em especial, como dito, pela exposição global que os Jogos permitiram fazer, proporcionando de maneira crescente a massificação turística da cidade.
Lugares, equipamentos e serviços que antes eram livre e facilmente acessados pelos seus residentes e mesmo por turistas, passaram a ser disputados, o que vem promovendo uma verdadeira estratificação espacial do seu território, gerando hierarquias funcionais, usos preferenciais e destinatários prioritários no desfrute e apropriação de seu território e seus atrativos.
Assim, o crescente afluxo de visitantes, decorrente disso e associado a fatores facilitadores do acesso ao destino, como os relacionados aos modais de transporte, com deslocamentos mais baratos em voos de empresas aéreas de low cost, de linhas terrestres de empresas rodoviárias cada vez mais conectadas a centros irradiadores europeus, além da operação de trens de alta velocidade encurtando distâncias entre localidades, e os relacionados aos tipos de acomodação que se proliferaram no destino e arredores, ampliando a oferta no âmbito da rede de alojamentos existentes, como ainda, a proliferação de serviços fast-food, com um relativo barateamento das necessidades de restauração alimentar, intensificaram o consumo dos atrativos turísticos existentes e das externalidades urbanísticas a eles associados.
Assim, apoiado em Aalbers que define a financeirização como “o crescente domínio dos atores financeiros, mercados, práticas, medidas e narrativas financeiras, em várias escalas, resultando numa transformação estrutural de economias, empresas (incluindo instituições financeiras), estados e famílias” (AALBERS, 2015, p. 214), e mais com o objetivo de “jogar luz sobre o tema da financeirização e seus nexos com o território” (BONICENHA, 2017, p.03), e neste particular, a partir da perspectiva de mercantilização turística da cidade, a transformação de recursos urbanos, sociais e culturais, por excelência, em produtos econômicos, face à massificação turística, estão encarecendo, obstruindo e estratificando o acesso a esses ativos “turistificados” em função de seu intenso consumo econômico.
Por exemplo, espaços públicos, antes de acesso livre e irrestrito, como o Parque Güell, passam a ter “filtros” para o seu desfrute, mediante o acesso pago, justificado, no discurso político-institucional, como via para assegurar a sua conservação e uso seguro, permitindo assim, a melhoria de suas condições de uso ao longo do tempo, como atrativo turístico de importância para a cidade. Destaque-se que, nos chamados “filtros”, antes mencionados, moradores que, mediante cadastramento junto à administração municipal, comprovem sua residência, seja nas imediações ao parque ou na cidade, contarão com um livre ingresso, assegurando, sem custos, como cidadãos barceloneses, o desfrute de sua cidade, por nela viverem. Um cartão pessoal e intransferível de acesso com um número identificador sinaliza sua condição. Assim, “o objetivo da gestão de acessos é controlar o acesso ao Parque Güell, a fim de evitar a sobrelotação, os movimentos e as multidões na zona patrimonial, garantindo assim a sua segurança, a sua correta utilização, a sua conservação e a qualidade da visita” (PARKGUELL, s.d.).
Outras situações podem ser mencionadas. Destaco, aqui, o caso do Mercat de la Boquería, na zona central antiga da cidade, que se transformou em um verdadeiro espaço gastronômico, além de spot de referência para o turismo criativo, a partir da realização de um tour por suas instalações com vistas à compra de ingredientes para, sob o comando de um chef, preparar pratos da culinária local, como tapas, sangrias e paellas. Nesse caso, é evidente a transformação do espaço do mercado tradicional, ao assumir, diante das demandas de funcionalidade turística emergentes, o papel de espaço de ócio e lazer que, em função da alta procura, tem se tornado um ambiente pouco acolhedor, decorrente de uma capacidade de carga sobrepassada, além de se tornar um espaço exclusivo e caro.
Este e outros ambientes da cidade acabam por afastar os seus usuários correntes, por uma substituição progressiva em nome dos visitantes que, pela financeirização turística da cidade, podem e pagam mais pelo seu desfrute. Isto, a custa de um certo grau de ressentimento dos habitantes locais que se veem preteridos e buscam outros ambientes para satisfazer suas necessidades e interesses, gerando, em maior ou em menor grau, processos segregacionistas na cidade.
Poderia, em contraposição a movimentos sociais reativos de rechaço aos turistas na cidade, destacar iniciativas locais que já existiam e que ajudam a contemporizar essa situação, como o fomento a visitas gratuitas e agendadas para todos os usuários, em especial, em equipamentos museais, como ainda o fomento de eventos abertos e irrestritos ao público em geral, em especial em períodos de mais afluxo turístico, para tornar mais acessível a todos atividades culturais e de lazer, como os festivais de verão, ou maior apoio e promoção às festas populares da cidade, como La Mercé ou a Fiesta Mayor de Gracia.
Registro de manifestação no Bairro de Gracia, Barcelona, Espanha. Acervo pessoal.
Assim, os movimentos manifestos nos grafismos de “tourists go home” em Barcelona expressam um descontentamento de setores sociais barceloneses que veem, em particular, os preços dos aluguéis de imóveis na cidade terem uma subida de mais de 30% nos últimos cinco anos (FERNANDEZ, 2024). Outro aspecto também relevante é o da transformação de usos em determinadas zonas da cidade, em especial de comércios locais tradicionais que, ao terem se mantido ao longo do tempo, apesar da oferta empresarial dos grandes equipamentos como os centros comerciais e os supermercados implantados a partir da segunda metade do século passado, por conta do apelo turístico ostensivo em determinadas zonas da cidade, veem-se progressivamente transformados com a especialização urbana de áreas turísticas como a das Ramblas, em Ciutat Vella, e das zonas lindeiras ao Templo Expiatório da Sagrada Família, do arquiteto Antoni Gaudi, no Eixample, que passaram a se constituir em zonas de oferta comercial exclusivamente orientada ao visitante (AJUNTAMENT DE BARCELONA, BARCELONA ACTIVA, 2023).
Deste modo, proliferam processos de gentrificação de áreas urbanas (HAMNET, 2003; GLASS, 1964; CAMPOS, s.d.), que, no caso, têm incidido em ambientes com potente conteúdo patrimonial arquitetônico e urbanístico, transformando consideráveis áreas pela sua segregação socioespacial, esta, caracterizada pela sua valorização acentuada, resultando na saída progressiva de residentes e usuários correntes em razão do aumento do custo de vida local e de consumo de seus equipamentos e serviços.
Por outro lado, de modo direto ou indireto, a turistificação de lugares pelos atrativos ali existentes (HERNÁNDEZ-RAMÍREZ, 2018; NOVY, 2017), pode favorecer ou mesmo financiar a recuperação de espaços onde esses atrativos se assentam, como ainda, promover a sua própria conservação. Além disso, podem fomentar a dinamização de atividades locais que associadas ao turismo possibilitam sua reinserção econômica e revalorização no contexto urbano da cidade. No entanto, é certo que essa turistificação cobra a sua fatura pela monetização de tudo o que pode ser oferecido e ocorrer naqueles lugares. Assim, as taxas turísticas que, no princípio tiveram um caráter experimental mais voluntário e solidário à localidade, têm se tornado cada vez mais obrigatórias em contextos urbanos e que, segundo a normativa correspondente, devem ter uma destinação clara e pragmática.
No caso de Barcelona, essa taxa turística, estabelecida em lei e justificada para dar suporte financeiro à melhoria e manutenção da infraestrutura e dos serviços relacionados ao turismo na cidade, como manutenção de monumentos, museus e áreas públicas, promoção turística em suas campanhas de marketing, apoio a serviços públicos de segurança, limpeza e transporte, financiamento de eventos e atividades culturais locais, entre outros (Cf. GENERALITAT DE CATALUNYA. LLei nº 5/2017, de 28 de março; AJUNTAMENT DE BARCELONA Ordenança Fiscal nº 2.2/2020, de 23 de dessembre), tem sido utilizada, ademais, para a aplicação de sobretaxas para justificar-se muito mais como um meio para conter o turismo massivo na cidade, diante do afluxo crescente de turistas.
Sua aplicação ocorre, por excelência, no âmbito do setor de alojamento da cidade, e que no caso das acomodações privadas de aluguel de variada duração, como as acessadas mediante a plataforma Airbnb, é uma exigência a ser atendida, caso o visitante queira efetivamente utilizar esse serviço. Assim, são cobrados 6,05 euros por pessoa/noite, para até 7 noites consecutivas, estando isentos menores de até 16 anos (Cf. AIRBNB, s.d.)
Desse instrumento arrecadatório, o Imposto sobre Estadias em Estabelecimentos Turísticos (IEETS), estão previstos para serem computados em favor dos cofres municipais, valores da ordem de 95 milhões de euros em 2024, podendo esse valor ser acrescido se for aprovado ainda este ano um aumento nessa sobretaxa a partir de outubro deste ano, o que poderá ascender a 115 milhões de euros (CHECKINSCAN, 2024).
Apesar disto, a massificação turística na cidade, caracterizada no fenômeno do overtourism (VAGENA, 2021; BROWN, s.d.), que estima receber 32 milhões de visitantes anuais na cidade condal (RAMOS,., 2024), segue, ainda, sem uma solução clara de como enfrentar o desafio de ser uma oferta turística de nível global sem perder a qualidade de vida que necessita assegurar aos seus cidadãos e aos que a visitam, demonstrando ser Barcelona uma cidade vítima de seu próprio sucesso (PLUSH, 2017).
Trata-se, portanto, de uma equação de difícil operação, mas que necessita de uma série de resoluções, o que certamente está a demandar um debate sistemático sobre quais estratégias, em uma perspectiva transversal, a adotar de forma contundente, consistente e permanente para alcançar um patamar de realização adequada da atividade turística que seja socialmente justa, economicamente viável, culturalmente diversa e ambientalmente equilibrada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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